CVM EDITA REGULAMENTAÇÃO DOS CRA: O QUE É IMPORTANTE SABER

CVM EDITA REGULAMENTAÇÃO DOS CRA: O QUE É IMPORTANTE SABER

A Comissão de Valores Mobiliários aprovou na última quarta-feira, dia 1º de agosto de 2018, a norma que regulamenta as ofertas públicas de certificados de recebíveis do agronegócio (“CRA”). A Instrução CVM nº 600  foi objeto de consulta pública e debates desde 2017 e contou com contribuições de diversos agentes atuantes no setor, incluindo escritórios de advocacia, instituições financeiras e companhias securitizadoras, inclusive por parte de VBSO Advogados. Destacamos abaixo alguns dos pontos mais relevantes da nova regulação, com foco em impactos para as futuras emissões de CRA.

 

  1. DELIMITAÇÃO DO LASTRO

 

A Instrução CVM nº 600/18 utilizou a mesma definição adotada pela Lei nº 11.076/04 para conceituar os “direitos creditórios do agronegócio”, assim entendidos como os negócios originários de relações entre produtores rurais ou suas cooperativas e terceiros, inclusive financiamentos ou empréstimos, relacionados com a produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos e insumos agropecuários e máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária.

A inclusão expressa de insumos agropecuários e máquinas e implementos atende a antiga demanda do setor, passando a incluir neste conceito os direitos creditórios do agronegócio originários “antes da porteira”, ou seja, referentes a tudo o que é necessário à produção agrícola, mas não está na fazenda, incluindo máquinas, defensivos químicos, fertilizantes, sementes, frota, etc.

Na tentativa de estreitar o conceito de direitos creditórios do agronegócio, a CVM definiu que, por comercialização de produtos agropecuários, entende-se aquele decorrente da atividade de compra, venda, exportação, intermediação, armazenagem e transporte de produtos in natura.  Estes, por sua vez, são entendidos como os produtos em estado natural, de origem animal ou vegetal, ou sujeito a:

 

(i)        beneficiamento primário, que corresponde a modificação ou preparo que não retire a característica original do produto, a exemplo de lavagem, limpeza, descascamento, secagem; ou

(ii)       industrialização rudimentar, isto é transformação do produto pelo produtor rural com alteração das características originais, a exemplo de pasteurização, resfriamento, fermentação, embalagem.

 

Consolidando entendimentos manifestados em decisões do colegiado, a norma definiu que os direitos creditórios do agronegócio devem estar inseridos em uma de 3 categorias, que são:

 

(i)       direito de crédito em que o devedor ou credor original seja produtor rural (pessoa física ou jurídica) ou cooperativa, independentemente da destinação de recursos;

(ii)       direito de crédito decorrente de dívida corporativa vinculada à relação comercial entre o devedor e produtor rural ou cooperativa (“Direito Creditório Dívida Terceiros”); ou

(iii)      direito de crédito decorrente de dívida contraída pelo próprio produtor rural ou cooperativa (“Direito Creditório Dívida Própria”).

 

No caso específico dos Direitos Creditórios Dívida Terceiros, a autarquia exigiu que se comprove a destinação de recursos captados com a emissão dos CRA através de contratos ou outros documentos (incluindo ordens de compra, pedidos de compra e notas comerciais) demonstrando a relação entre o terceiro e o produto rural, em montantes e prazos compatíveis com os CRA. A verificação desta destinação será realizada semestralmente polo agente fiduciário da emissão.

A relação comercial acima referida entre o terceiro e o produtor rural ou sua cooperativa deve existir previamente à emissão do CRA. Na visão da autarquia, a ausência de uma relação prévia inviabilizaria a determinação do volume a ser captado na emissão, assim como eventual reparação caso o número de negócios não corresponda ao histórico observado no passado.

Além disso, a CVM vedou enquadrar reembolsos de despesas previamente incorridas como direitos creditórios do agronegócio aptos a lastrear emissão de CRA, pois a fungibilidade inerente aos produtos agrícolas torna difícil a verificação a efetiva utilização dos recursos captados em produção agrícola, de modo que seu reembolso poderia restar prejudicado.  Vedou, igulamente, a utilização como lastro de operações já quitadas, inclusive mediante a utilização de notas fiscais como direitos creditórios, pois o intuito dos CRA é demonstrar a relação existente entre produtores rurais no momento de sua emissão.

Por outro lado, a CVM permitiu a utilização como lastro de CRA de direitos creditórios originários de negócios realizados entre distribuidores e terceiros, desde que haja a prévia comprovação de que a comercialização dos distribuidores seja realizada para produtores rurais.  Esta comprovação sofreu uma restrição em relação aos Direitos Creditórios Dívida Terceiros, visto que deverá ser realizada de forma prévia e por meio de contratos ou títulos de crédito, impossibilitando, a princípio, (i) a comprovação da vinculação dos recursos captados com os CRA ao longo da vigência da Oferta e (ii) a comprovação mediante documentos mais simples como pedidos de compra.

Isto dificulta, do ponto de vista prático, a estruturação de CRA com este tipo de lastro, pois não é prática comercial corrente a celebração de tais instrumentos entre revendas e produtores rurais e, muito menos, de forma antecedente.  Essa formalização prévia constitui importante desafio a ser superado em tais estruturas e poderia ser futuramente revista pela autarquia em vista da própria natureza dos produtos vendidos em tais revendas (e.g., sementes, defensivos agrícolas e outros produtos cuja única utilidade se encontra no contexto do agronegócio).

Mais ainda, a nova regulamentação permitiu que os direitos creditórios do agronegócio sejam subscritos diretamente pela securitizadora, de modo que esta poderá, exemplificativamente, subscrever as emissões de debêntures ou adquirir certificados de direitos creditórios do agronegócio, eliminando a equivocada interpretação anterior de que seria necessário haver um “debenturista de passagem” ou “cedente” para originação do lastro.

Em relação ao lastro, houve restrição à substituição de lastro.  Em primeiro lugar, o termo de securitização deverá conter detalhes sobre a possibilidade de eventual substituição dos direitos creditórios do agronegócio lastro dos CRA.  Esta substituição somente poderá ocorrer nos casos de: (i) vícios na cessão que possam afetar a cobrança dos direitos creditórios; (ii) manutenção do nível de retenção de risco assumida pelo cedente ou terceiros; ou (iii) manutenção do teto de concentração de cedente ou devedor.

Apesar da importância de regulamentação específica para os CRA, a delimitação do lastro do CRA nela disposta poderá limitar algumas operações já realizadas atualmente, mais especificamente aquelas que não envolvem diretamente o produtor rural, mas que o beneficiam, de forma indireta, na integração das atividades econômicas que compõem a produção.

É importante ter em mente, nesta análise, que o agronegócio deve ser entendido como um conjunto organizado de atividades econômicas que envolve todas as etapas compreendidas entre o fornecimento dos insumos para produção até a distribuição, para consumo final, de produtos, subprodutos e resíduos de valor econômico relativos a alimentos, fibras naturais e bioenergia.

Com isso, o conceito de “Direito Creditório do Agronegócio” não deveria se restringir aos negócios realizados por pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvam atividade de produção agropecuária primária, pesqueira ou silvicultural, mas deveria levar em consideração o financiamento de toda a cadeia agroindustrial.

Entendemos que o conceito adotado pela CVM deveria estar alinhado ao atual conceito de cadeia agroindustrial, que não mais se limita à produção agrícola, mas abrange outras combinações contratuais que se estabelecem entre os mais diversos agentes envolvidos na cadeia agroindustrial, antes e depois da porteira.

 

  1. REGRAS PARA REVOLVÊNCIA

 

A nova regra oficializa a possibilidade de revolvência do lastro em emissões de CRA, entendida como a possibilidade de aquisição de novos direitos creditórios pela securitizadora com a utilização dos recursos provenientes do pagamento dos direitos creditórios originalmente vinculados à emissão.

Para tanto, devem ser observados determinados requisitos[1] para a revolvência, os quais destacamos: (i) que o termo de securitização estabeleça prazo máximo entre o efetivo recebimento dos recursos e a nova aquisição; (ii) que os novos direitos creditórios atendam aos critérios de elegibilidade previstos no termo de securitização; (iii) que haja compatibilidade entre o montante total dos direitos creditórios vinculados ao CRA e o pagamento da remuneração e amortização previstas para emissão; (iv) que a parcela de recursos oriundos dos direitos creditórios não utilizada para aquisição de novos direitos creditórios do agronegócio deve ser imediatamente utilizada na amortização ou no resgate dos CRA; e (v) que o termo de securitização seja aditado em até 45 dias contados da data da aquisição dos novos direitos creditórios do agronegócio.

 

  1. OFERTA PÚBLICA

 

Com relação ao procedimento de oferta pública de distribuição de CRA, merecem destaque: (i) as regras para ofertas direcionadas a investidores não qualificados[2]; e (ii) as oferta públicas conduzidas pelas companhias securitizadoras.

As ofertas de CRA para investidores não qualificados estão sujeitas a regras específicas, sendo exigido que sua estrutura preveja todos os requisitos abaixo:

 

  • retenção substancial de riscos e benefícios do cedente ou de terceiros, salvo se os CRA estiverem vinculados a dívida de responsabilidade de um único devedor ou devedores sob controle comum [3];
  • ser constituídos por créditos considerados como performados no momento da cessão ou subscrição pela companhia securitizadora – em relação aos créditos performados a CVM entende que são aqueles em que o produto objeto da compra ou venda já tenha sido entregue ou em que a prestação de serviço já tenha ocorrido;
  • possuir devedores ou coobrigados com exposição máxima de 20% (vinte por cento) do total emitido, salvo se o devedor ou coobrigado for companhia aberta ou instituição financeira ou equiparada; e
  • serem constituídas por direitos creditórios cedidos por um único cedente ou cedentes sob controle comum.

 

Conforme sugere a própria CVM, a retenção de riscos do cedente ou de terceiros pode ser atendida, por exemplo, por meio da emissão, para o cedente ou terceiros, de CRA de classe subordinada ou, ainda, da assunção de coobrigação ou contratação de seguro.[4]

Não obstante a retenção de risco pelo cedente atenda à recomendação da IOSCO – International Organization of Securities Commissions para criar alinhamento de interesses do cedente com os dos investidores, entendemos que esta obrigatoriedade destoa da própria natureza das operações de securitização.  Via de regra, é do interesse do investidor correr o risco da carteira de recebíveis, e não do cedente ou originador dos créditos – tendo em vista que que as operações de securitização, em geral, se justificam justamente pelo melhor risco de crédito da carteira cedida em relação ao cedente.

Por outro lado, sob a ótica do cedente, uma previsão deste tipo impede reconhecer de imediato a receita oriunda do preço de cessão dos direitos creditórios, bem como lhe obriga a manter os créditos em seu balanço ao longo da vida da operação.

No que tange ao limite de concentração de direitos creditórios por devedores ou coobrigados, a limitação da dispensa do cumprimento do limite apenas às sociedades anônimas com registro de companhia abertas limita o acesso a ofertas de CRA para investidores não qualificados para grande número de empresas organizadas como companhias fechadas ou sociedades limitadas, que constituem a parcela majoritária das empresas atuantes no setor. Isto, de certa forma, desencoraja o mercado de ofertas públicas de CRA, bem como limita as possibilidades de investimentos pelos participantes do mercado.

Inovação relevante da norma foi permitir que ofertas públicas de CRA que não ultrapassem o montante de R$100.000.000,00 (cem milhões de reais) possam ser distribuídas diretamente pela companhia securitizadora emitente dos títulos, dispensando a participação de instituição intermediária para distribuição dos CRA. Para tanto, devem ser atendidos os seguintes requisitos cumulativos:

 

  • realização da distribuição pela própria companhia securitizadora emitente dos CRA; e
  • observância, pela companhia securitizadora, de requisitos mínimos de compliance, bem como designação de diretor responsável pela verificação de cumprimento das normas de compliance aplicáveis a instituições intermediárias[5].

 

Entendemos ser positiva esta possibilidade de ofertas públicas de CRA serem conduzidas pelas próprias securitizadoras, pois isso diminui a burocracia envolvida e reduz os custos envolvidos, promovendo uma maior atratividade, do ponto de vista comercial, aos investidores interessados em adquirir CRA.

 

  1. CONTRATAÇÃO DE CUSTODIANTE

 

Exceto quando os ativos que servirem de lastro forem registrados em entidade administradora de mercado, ou registradora de créditos autorizada pelo Banco Central do Brasil, será obrigatória a contratação de custodiantes no âmbito de emissões de CRA.

O serviço de custódia deve ser prestado por pessoas jurídicas tais como bancos comerciais, múltiplos ou de investimentos, caixas econômicas, sociedades corretoras ou distribuidoras de títulos e valores mobiliários, e entidades prestadoras de serviços de compensação e liquidação e de depósito centralizado de valores mobiliários, devidamente autorizadas pela CVM a desempenhar as respectivas funções de custodiante, nos termos da Instrução CVM nº 542/13.

Esta obrigatoriedade de contratação do custodiante inspira-se nas regras aplicáveis aos fundos de investimento em direitos creditórios – FIDC, e visam a conferir maior segurança à estrutura da securitização por meio da prevenção de conflitos de interesse.  Com esta previsão, a securitizadora fica proibida de deter a guarda dos documentos comprobatórios dos créditos, o que pode aumentar o custo de tais operações e limitar a realização de operações que envolvam créditos muito pulverizados e/ou com tíquete médio baixo, tal como se verificou após a edição da Instrução CVM nº 531/13, aplicável aos FIDC. Parece-nos que tais operações, para se concretizarem, acabarão sendo voltadas a investidores qualificados ou profissionais em que seja formulado pedido de dispensa de cumprimento deste requisito à CVM.

 

Equipes de Agronegócio e de Mercado de Capitais

 

 

[1] São também requisitos para a revolvência: (i) que os recursos oriundos dos direitos creditórios do agronegócio, enquanto não utilizados para aquisição de novos direitos creditórios, somente poderão ser utilizados para aplicação em títulos públicos federais, operações compromissadas com lastro em títulos públicos federais ou cotas de fundo de investimento classificados nas categorias “Renda Fixa – Curto Prazo” ou “Renda Fixa – Simples”; (ii) que o agente fiduciário verifique o atendimento de tais critérios de elegibilidade; e (iii) que o termo de securitização indique os procedimentos a serem adotados pelo agente fiduciário em caso de descumprimento da obrigação de destinação dos recursos oriundos dos direitos creditórios não utilizados para aquisição de novos direitos creditórios do agronegócio na amortização ou no resgate dos CRA.

[2] A definição de “investidores não qualificados” é realizada por exclusão, ou seja, “investidores não qualificados” são todos aqueles que não sejam: (i) investidores profissionais, nos termos do Art. 9º-A da Instrução CVM nº 539, de 13 de novembro de 2013; (ii) pessoas naturais ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição; (iii) pessoas naturais que tenham sido aprovadas em exames de qualificação técnica ou possuam certificações aprovadas pela CVM como requisitos para o registro de agentes autônomos de investimento, administradores de carteira, analistas e consultores de valores mobiliários, em relação a seus recursos próprios; (iv) clubes de investimento, desde que tenham a carteira gerida por um ou mais cotistas, que sejam investidores qualificados; e (v) os regimes próprios de previdência social instituídos pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou por Municípios, de modo que serão considerados investidores profissionais ou investidores qualificados apenas se reconhecidos como tais conforme regulamentação específica do Ministério da Previdência Social.

[3] Conforme o Pronunciamento Contábil CPC 48 a retenção substancial de todos os riscos e benefícios da propriedade do ativo financeiro é realizada se, durante todo o período em que a coobrigação do cedente em dos créditos do agronegócio existir, a relação dos valores de principal, juros e eventuais encargos não ser alterada significativamente como resultado da transferência. Ainda, o item 3.2.6 (b) do Pronunciamento Contábil CPC 48 dispõe que “se a entidade retiver substancialmente todos os riscos e benefícios da propriedade do ativo financeiro, ela deve continuar a reconhecer o ativo financeiro”.

[4] § 1º do Art. 12 da Instrução CVM nº 600: “A retenção de riscos referida no inciso I pode ocorrer, dentre outros, por meio da emissão, para o cedente ou terceiros, de certificados de classe subordinada ou, ainda, da assunção de coobrigação ou contratação de seguro.”

[5] A saber, (i) normas relativas a cadastro de clientes e à prevenção de lavagem de dinheiro (Instrução CVM nº 505/11 e Instrução CVM nº 301/99); (ii) normas relativas a dever de verificar adequação de produtos aos respectivos clientes, ou “suitability” (Instrução nº 539/13).