Efeitos do COVID-19 em cláusulas de “Market Flex”

Efeitos do COVID-19 em cláusulas de “Market Flex”

A recém-declarada pandemia do COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) tem trazido incertezas no cenário financeiro mundial, a exemplo da grande flutuação da bolsa de valores brasileira nas últimas semanas. Nesta linha, algumas medidas devem ser observadas pelos participantes que atuam nesse mercado, como a adequação de mecanismos jurídicos a esta época de instabilidade.

Dentre estes mecanismos, a cláusula de Market Flex é usualmente utilizada na distribuição de valores mobiliários no mercado de capitais brasileiro, e permite à instituição intermediária da oferta pública sugerir alterações nas condições da emissão para refletir o cenário econômico daquele momento[1].

 

Trazemos abaixo exemplo público de redação este tipo de cláusula:

“O Coordenador Líder reserva-se o direito de, a qualquer momento, até a data da concessão do registro, pela CVM, para distribuição pública das Notas Promissórias, requerer à Emissora que modifique quaisquer termos, condições, estrutura, prazos, taxas de juros, remuneração, da Emissão, caso tais modificações sejam necessárias para refletir as condições de mercado daquele momento (“Market Flex”), em conformidade com o Contrato de Colocação das Notas Promissórias celebrado entre a Emissora e os Coordenadores. Caso o Coordenador Líder e a Emissora não cheguem a um acordo com relação às alterações propostas, o Coordenador Líder se desobriga dos termos e condições contidos no Contrato de Distribuição das Notas Promissórias. O direito ao Market Flex aqui descrito será exercível nas situações que afetem o retorno esperado pelos potenciais compradores das Notas Promissórias, ou que resultem no aumento substancial dos custos ou na razoabilidade econômica da operação aqui descrita, ocorridas no período de até 15 (quinze) dias, anteriores à data de exercício do Market Flex, dentre as quais: (i) mudanças significativas no ambiente legal e/ou regulatório que disciplinam a emissão; (ii) turbulências políticas e/ou econômicas, tais como: (a) renúncia ou impeachment do Presidente da República do Brasil; (b) alteração nas diretrizes da política monetária e cambial adotada pelo Banco Central do Brasil, Ministério da Fazenda e/ou Comitê de Política Monetária, que resultem em: (i) aumento na taxa anual de juros básica (Selic) em 2,50 p.p. (dois ponto cinco pontos percentuais) ou mais; (ii) incremento do risco-país em 250 bps (duzentos e cinqüenta pontos base) ou mais; ou (iii) desvalorização do Real em relação ao dólar norte-americano em 30% (trinta por cento) ou mais; (iv) racionamento de energia elétrica ou mais; (v) não pagamento de qualquer obrigação financeira (moratória) da República Federativa do Brasil, perante credores nacionais e/ou internacionais ou mais; (vi) estado de guerra ou de defesa/sítio estabelecido no Brasil; ou (vii) ataque terrorista no território brasileiro.” [2]

 

Conforme a cláusula acima reproduzida ilustra, o exercício da alteração dos termos e condições da oferta pela instituição intermediária de forma unilateral é subordinado à ocorrência de alguns eventos que possam afetar a razoabilidade financeira da operação, tais como turbulências políticas e/ou econômicas, modificações no ambiente legal ou regulatório que disciplinem a oferta e aumento da taxa anual de juros.

Nesse sentido, a instabilidade financeira gerada em decorrência do COVID-19, pode ser considerada como uma situação adversa que se adequa aos fins da cláusula de Market Flex, ou seja, as alterações econômicas e políticas enfrentadas nesse período de epidemia podem ensejar desequilibro nas condições da oferta e assim, motivar a utilização da referida cláusula, nos termos da usual previsão de que o Market Flex será exercido em razão de turbulências políticas e econômicas.

Desse modo, diante do cenário atual, o Market Flex pode se configurar como instrumento favorável aos emissores de valores mobiliários para se adaptar às características do mercado financeiro atual, e tornar possível realizar alterações nas condições da emissão ou até mesmo rescindir o contrato de prestação de serviços de distribuição, sem ônus à instituição financeira.

Por fim, vale destacar que as cláusulas de Market Flex, apesar de possibilitarem à instituição intermediária o exercício de um direito unilateral, são consideradas válidas no direito brasileiro por sua característica simplesmente potestativa, ao vincular o arbítrio da instituição financeira à ocorrência de um evento independente, de modo contrário à cláusulas puramente potestativas, expressamente vedadas no ordenamento jurídico[3].

A boa redação e a boa aplicação, de acordo com sua finalidade precípua, da cláusula de Market Flex, pode ser uma boa alternativa para a manutenção das ofertas públicas em andamento, adaptando seus termos e condições ao conturbado cenário econômico atual.

 

Equipe de Mercado Financeiro e de Capitais – VBSO Advogados

 

[1] Ressalta-se que a construção doutrinária em torno do conceito de market flex é menos sólida, nas palavras de RIBEIRO JÚNIOR. Enquanto Nelson Eizirik aborda o termo “market out”, utilizada exclusivamente na distribuição pública de distribuição de valores mobiliários sob o regime de garantia firme, para se referir a cláusulas que permitem à instituição intermediária modificar taxas ou exonerar o subscritor daquele título, com vistas a desonerar excessivamente os seus serviços, Eduardo Salomão Neto trata da possibilidade de rescisão do contrato de distribuição por problemas conjunturais que interfiram na emissão em si, e não na situação financeira do emissor. De forma análoga, Graham Vinter menciona a utilização do Market flex em propostas firmes de contratação nas operações de financiamento de projetos, no entanto, este mecanismo, como menciona o próprio autor, depende da avaliação dos estruturadores das condições de mercado para obtenção do financiamento, ao passo em que cláusulas de alteração material adversa (material adverse change) dependem da ocorrência de certos eventos previamente delimitados entre as partes, que, caso se relacionem a fatores externos a estas, se assemelha ao Market flex usualmente adotado no Brasil. (RIBEIRO JÚNIOR, José Alves. A validade da cláusula de Market flex em contratos de distribuição de valores mobiliários. Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários. 6ª Ed. São Paulo: Almedina, 2017, pág. 80-83).

[2] RIBEIRO JÚNIOR, 2017, pág. 76-77.

[3] Como RIBEIRO JÚNIOR bem esclarece, “o conceito de cláusula puramente potestativa, ilícita no direito brasileiro, que é aquela que depende única e exclusivamente da vontade de uma das partes – ou seja, de seu “puro arbítrio”, na dicção legal. Difere da cláusula simplesmente potestativa (que é válida) por nesta a ocorrência da própria manifestação de vontade da parte (em que consiste a condição) depender de elementos externos ao agente.” (RIBEIRO JÚNIOR, 2017, pág. 84.)