JOTA – Garantia integral não é pressuposto de conhecimento de embargos à execução fiscal

JOTA – Garantia integral não é pressuposto de conhecimento de embargos à execução fiscal

Garantia integral não é pressuposto de conhecimento de embargos à execução fiscal

Aplicação de precedentes deve ser feita com ponderação, respeitando-se as características dos casos julgados

por Vinícius Caccavali

 

O objetivo deste artigo é debater a necessidade de garantia integral como pressuposto ao conhecimento de embargos à execução fiscal. Não se pretende tratar aqui do oferecimento de embargos sem apresentação de garantia, mas sim da hipótese em que o sujeito passivo sofre penhora de parte do valor executado e não tem condições (ou interesse) em complementar, de imediato, o valor total executado.

Teria o legislador ordinário, no parágrafo 1º do artigo 16 da Lei nº 6.830/1980[1], fixado que esse executado terá de assistir inerte à conversão em renda dos valores bloqueados, sem possibilidade defesa? Parece-nos que a resposta só pode ser negativa.

É conhecido o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.272.827, julgado pela sistemática dos recursos repetitivos, de que não é aplicável para as execuções fiscais a previsão da legislação processual civil que dispensa a garantia da execução[2].

Porém, o que se pretende debater aqui é diferente: essa garantia precisa ser integral? O STJ próprio já afastou a necessidade de garantia integral, mas condicionou à comprovação da hipossuficiência do devedor[3]. A nosso ver, não há fundamento para essa condicionante.

A concepção de que o hipossuficiente não precisa garantir integralmente a execução é positiva, pois privilegia a ampla defesa; no caso, inclusive, o fundamento da decisão está na necessidade de viabilizar o “direito de defesa ao ‘pobre’”.

A nosso ver, contudo, essa decisão não representa grande inovação, na medida em que o hipossuficiente, especialmente quando na condição de beneficiário da justiça gratuita, poderia a qualquer tempo propor ação de procedimento ordinário para requerer a anulação do débito fiscal, sem se sujeitar a custas ou ao ônus financeiro de sucumbência.

Apesar de a questão da insuficiência não ser o tema deste artigo, essa introdução é relevante para a compreensão do contexto jurisprudencial do STJ, que acaba, por equívocos de interpretação e adequação, restringindo o conhecimento por essa Corte de discussões ainda não enfrentadas.

Em outras palavras, a aplicação equivocada do precedente impede que novos debates cheguem ao Tribunal. Por isso, é relevante ressaltar novamente o objeto de discussão neste artigo: é possível o processamento de embargos à execução fiscal sem garantia integral do juízo, independentemente da condição de hipossuficiência do embargante? Adiantando nossa conclusão, entendemos que sim.

O ponto de partida para essa avaliação é o parágrafo primeiro do artigo 16 da Lei nº 6.830/80. Parece-nos que o legislador introduziu uma restrição ao oferecimento de embargos antes da apresentação de garantia, mas não impediu, em absoluto, o processamento dessa defesa em caso de garantia parcial.

Logo, em caso de penhora parcial, o que ocorre, por exemplo, na penhora online que não atinge o montante total da dívida, é direito do executado ver processados seus embargos à execução para evitar que o valor bloqueado seja convertido em renda.

A partir dessa consideração, entendemos que a única restrição trazida pelo artigo 16 é para que os embargos não sejam admitidos antes de “garantida a execução”; afinal, apenas se embarga quando há interesse em evitar que se transforme em pagamento aquilo que foi penhorado ou oferecido em garantia.

Desse modo, é possível ao executado oferecer embargos sem garantia integral do débito, ainda que se prossiga com o processo executivo para cobrança do valor remanescente (não garantido).

De fato, caberia ao juiz verificar a presença dos requisitos autorizadores da suspensão da execução, em linha com a decisão do STJ no Recurso Especial nº 1.272.827, no sentido de que é possível o recebimento dos embargos à execução fiscal sem que seja suspenso o processo executivo.

Nesse julgamento, o STJ fixou que a suspensão da execução fiscal depende, além de garantia, da presença de fumus boni iuris periculum in mora[4]. Ora, se é atribuído ao juiz poder discricionário para avaliar se a execução pode prosseguir, ainda que garantida, parece razoável permitir decisão sobre a suspensão da execução no caso de garantia parcial.

É importante lembrar do contexto em que propomos essa discussão para não fugir da realidade. No Brasil, infelizmente, é comum encontrar execuções de valores prescritos, cobrança de juros e multas inconstitucionais, inclusão de antigos sócios e administradores na CDA sem que tenha havido sua participação em processo administrativo etc.

É razoável aceitar que o ex-sócio tenha que garantir uma dívida milionária de pessoa jurídica da qual ele não tinha nem conhecimento antes de sofrer uma penhora parcial em sua conta bancária? Entendemos que não. Os instrumentos de garantia têm custo para os contribuintes e responsáveis, o que nem sempre está ao alcance de todos.

Esses fatos devem ser considerados nos debates envolvendo execuções fiscais, de modo a combater a ideia de que a execução corre de acordo com o interesse do credor e por isso cabe ao executado oferecer garantia integral e depois de defender, talvez obtendo efeito suspensivo aos seus embargos.

A Lei nº 6.830/80 merece ser analisada com ponderação, levando-se em conta as mudanças ocorridas nesses mais de trinta anos da sua vigência. À época, por exemplo, não se falava em efeito suspensivo aos embargos; a suspensão era automática, razão pela qual parece até razoável admitir apenas garantia integral.

Como é possível perceber, a questão é complexa, não se podendo tolerar a acrítica e imprudente aplicação de um precedente que passa longe de abranger todas as situações possíveis.

Cabe ao Poder Judiciário analisar o tema para definir um norte aos executados, bem como estabelecer parâmetros que indiquem o que é aceitável em termos de garantia parcial do juízo. Não se pode admitir que a leitura fria de uma lei com mais de trinta anos cause prejuízo do direito de defesa.

Sobre os precedentes do STJ, merece nossa crítica o Recurso Especial nº 1.127.815, também julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos. Ao avaliar a possibilidade de intimação ex officio à complementação de garantia, o julgamento acabou avançando, sem a devida reflexão, para a necessidade de comprovação inequívoca de ausência de outros bens penhoráveis para que os embargos à execução fiscal fossem processados sem garantia integral. Sem avançar muito, esse julgamento merece crítica por dois pontos.

Primeiro, o relator, ministro Luiz Fux, parece ter ignorado os julgados da própria Corte para decidir, pois, apesar de destacar ementas favoráveis à tese aqui defendida[5], acabou concluindo que apenas quando comprovada a hipossuficiência é que poderia haver julgamento dos embargos.

Contudo, os julgamentos destacados no voto são no sentido de que os embargos à execução devem ser processados, tendo em vista a possibilidade de posterior complementação da garantia, o que poderia ocorrer a qualquer tempo.

Segundo porque relata que o valor executado seria de “em torno de R$ 77.000,00” e a garantia “cerca de R$ 15.000,00” para concluir que o valor penhorado seria “obviamente insuficiente”.

Ora, não nos parece possível adotar essa conclusão sem estabelecer parâmetros objetivos do que seria uma garantia suficiente. Adotando a lógica de pensar em casos extremos, como ficaria o devedor que garantiu 99% do valor executado? E aquele que teve penhorado valor equivalente a apenas 1% da execução? Enquanto não houver parâmetros, também essa avaliação ficará a critério do julgador.

Como mencionado no início destas breves notas, nosso objetivo era proporcionar reflexão sobre o tema, de modo a cativar o Poder Judiciário a avaliar a questão de maneira detalhada. A aplicação de precedentes deve ser feita com ponderação, respeitando-se as características dos casos julgados pelos Tribunais Superiores e observando-se o que foi efetivamente objeto de decisão. Não se pode admitir que a busca por celeridade processual implique prejuízo à adequada análise da legislação e ao conhecimento de novos debates.

 


[1] Art. 16 – O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:

§ 1º – Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução.

[2] “Em outra ponta, sempre com respeito aos que pensam de forma diversa, é de se afastar a aplicação nas execuções fiscais do art. 736, do CPC, na redação dada pela Lei n. 11.382/2006, que exime o executado de garantir o juízo para opor-se à execução por meio de embargos. Isto porque a LEF não é silente no ponto, pois seu art. 16, §1º registra expressamente que “Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução“.” REsp 1272827/PE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/05/2013, DJe 31/05/2013

[3] “5. Nessa linha de interpretação, deve ser afastada a exigência da garantia do juízo para a oposição de embargos à execução fiscal, caso comprovado inequivocadamente que o devedor não possui patrimônio para garantia do crédito exequendo.” REsp 1487772/SE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/05/2019, DJe 12/06/2019

[4] Tese firmada: “A atribuição de efeitos suspensivos aos embargos do devedor” fica condicionada “ao cumprimento de três requisitos: apresentação de garantia; verificação pelo juiz da relevância da fundamentação (fumus boni juris) e perigo de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).”

[5] “TRIBUTÁRIO. PENHORA INSUFICIENTE. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL.

  1. Jurisprudência sedimentada no sentido de que a insuficiência de penhora não é causa suficiente para determinar a extinção dos embargos à execução. […]”

(AgRg no REsp 820.457/RJ, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 09/05/2006, DJ 05/06/2006, p. 253)

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA INSUFICIENTE. POSSIBILIDADE DE RECEBIMENTO DOS EMBARGOS DO DEVEDOR.

  1. A orientação das Turmas que integram a Primeira Seção desta Corte firmou-se no sentido de que a insuficiência da penhora, por si só, não constitui óbice ao recebimento dos embargos do devedor, porquanto pode ser suprida em posterior reforço, que, segundo o art. 15, II, da Lei 6.830/80, pode-se efetivar em qualquer fase do processo. […]”

(REsp 739.137/CE, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/10/2007, DJ 22/11/2007, p. 190)

 

Artigo publicado no JOTA: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/garantia-integral-nao-e-pressuposto-de-conhecimento-de-embargos-a-execucao-fiscal-13062020