Capital Aberto – A intricada tarefa de se regular os criptoativos

Capital Aberto – A intricada tarefa de se regular os criptoativos

Maiores obstáculos regulatórios não estão no ambiente digital, mas na interconexão entre ele e o mundo real

Nos últimos anos, tem ganhado força o debate sobre a necessidade de regulamentação dos criptoativos. Em diversas jurisdições, começam a surgir normas para disciplinar sua emissão e negociação, que vão desde o extremo da completa proibição até a adoção do bitcoin como moeda de curso forçado. Atualmente, no Brasil, tramitam pelo Senado diversos projetos de lei que pretendem normatizar as atividades relacionadas aos ativos virtuais.

Independentemente de uma regulação ampla ou geral para os criptoativos, merece especial atenção o uso de protocolos blockchain para a emissão e negociação de valores mobiliários e sua relação com a atual regulação do mercado de capitais. Um aspecto importante que deve ser observado é que nem todo criptoativo é um valor mobiliário. Mas, muitas vezes, criptoativos criados com o objetivo de oferecer uma oportunidade de investimento assumem essa natureza. Fazer essa diferenciação não é simples, e a confusão aumenta devido a um problema de taxonomia. Chamamos pelo mesmo nome — seja como criptoativos, criptomoedas, moedas virtuais, ativos virtuais ou tokens — coisas que podem ser bastante distintas. Um token basicamente é uma folha em branco dentro de uma determinada rede blockchain, que pode ser preenchida com dados que confiram direitos e obrigações ao emissor ou a terceiros. A depender desses direitos, um token pode se tornar um valor mobiliário.

Nos termos do artigo 2º, IX, da Lei 6.385/76, são considerados valores mobiliários contratos ou instrumentos (como tokens) de investimento coletivo, que gerem direito de remuneração, participação ou parceria, cujos rendimentos advenham do esforço de um terceiro que não o próprio investidor e sejam ofertados publicamente. A principal consequência da oferta de um token dessa natureza ao público é a necessidade do seu registro ou dispensa pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Além dos ônus inerentes ao processo de tal registro — uma contrapartida justa e necessária para acesso à poupança popular —, o maior obstáculo encontra-se na própria regulação do mercado de capitais, que, evidentemente, foi criada anteriormente à existência da tecnologia blockchain.

Fragilidades

Esse cenário evidencia uma característica paradoxal desse universo: seus maiores desafios regulatórios não estão no ambiente virtual (on chain), mas no mundo real (off chain). Prova disso são as preocupações envolvendo as exchanges. Constituídas geralmente como pessoas jurídicas sem um tipo societário predefinido, elas atuam na conexão entre compradores e vendedores de criptomoedas, sendo a principal porta de entrada do sistema blockchain para a negociação desses ativos.

Havendo uma transação de compra e venda, a exchange debita o crédito em reais do comprador no valor negociado e credita o montante de ativos correspondente. Na outra ponta, debita os ativos vendidos pelo vendedor e credita o valor em reais da negociação.  Por esse serviço, geralmente recebe um percentual sobre o montante de recursos transacionados. Nota-se, assim, que, ao intermediar essas operações, as exchanges retêm três riscos principais: (i) risco de crédito; (ii) risco operacional; e (iii) risco moral ou reputacional.

O risco de crédito decorre do fato de que os recursos (moeda corrente) e ativos (criptomoedas) são integralmente transferidos para o domínio da exchange.  Qualquer efeito patrimonial adverso sobre sua atividade poderá afetar a capacidade de cumprir seus compromissos com clientes, compradores ou vendedores. Estes, por conseguinte, também sofrerão do risco reputacional se porventura uma exchanges e apropriar indevidamente dos recursos que lastreiam os créditos de seus usuários ou houver uma eventual crise sistêmica que resulte em uma corrida para saque dos recursos.  Os riscos operacionais, por sua vez, estão ligados ao desenvolvimento da tecnologia e a possíveis ataques cibernéticos que possam comprometer o patrimônio da exchange e de seus usuários.

Esse quadro deixa claro que essas plataformas são, de fato, um potencial ponto de fragilidade. E sendo a porta de entrada para a utilização dos sistemas de blockchain, que se caracterizam pela privacidade e pelo anonimato dos proprietários dos ativos, é crucial que elas também zelem pelo cumprimento de regras de prevenção a lavagem de dinheiro.

Outro aspecto a ser enfrentado diz respeito à custódia de ativos que são “digitalizados” em blockchain.  Tem sido cada vez mais comum a emissão de ativos virtuais (tokens) que são a representação digital de ativos reais. Um exemplo é um token que representa uma fração de um precatório.  Muito embora ele possa legitimar seu titular como (co)proprietário do precatório, provavelmente este não estará em nome do dono do token no âmbito do processo judicial. Operacionalmente, isso exige que alguém faça a custódia do precatório e repasse os pagamentos ao titular do token.  A falta de regulação dessa atividade de custódia gera insegurança e expõe investidores a riscos de crédito, operacionais e reputacionais.

A criação de uma norma que trate desses aspectos, portanto, é fundamental para que se estimule a confiança entre os agentes de mercado. Sua edição pode ajudar não só na redução de incertezas, mas também no cumprimento do dever constitucional de promoção do desenvolvimento tecnológico e inovação (artigo 218 da Constituição Federal).


Erik Oioli (erik@vbso.com.br) é sócio-diretor do VBSO Advogados

 

Reportagem publicada pelo Capital Aberto em 24 de abril de 2022, disponível neste link https://capitalaberto.com.br/secoes/artigos/a-intricada-tarefa-de-se-regular-os-criptoativos/