Valor Econômico – CVM fecha cerco a renda fixa digital de plataforma ‘cripto’

Valor Econômico – CVM fecha cerco a renda fixa digital de plataforma ‘cripto’

A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) fechou o cerco às ofertas de “tokens” de renda fixa – investimentos no formato digital – que prometem uma rentabilidade, feitas por meio de plataformas de ativos digitais e de criptomoedas. A autarquia emitiu uma circular de orientação que caracteriza como valor mobiliário a maioria das representações eletrônicas – chamadas de tokens, exatamente como ocorre nas criptomoedas e nos NFTs, as versões não fungíveis de arte digital – de dívida corporativa e recebíveis de empresas, trazendo para sua jurisdição produtos que estavam em uma zona cinzenta regulatória.

Com a nova orientação, esses tokens terão de ser registrados sob pena de sofrer “stop order” e outras sanções, como os demais investimentos coletivos. A circular não cria nenhuma regra nova, mas deve ter implicações relevantes para as plataformas de ativos digitais e tokenizadoras, que precisarão incorporar no processo as securitizadoras, ampliando os custos das emissões. Por outro lado, traz segurança jurídica, o que pode permitir a entrada nesse mercado dos grandes bancos e de empresas. Se enquadram na categoria os tokens que representam recebíveis de dívida de empresas, conhecidos como fluxos de pagamento, cotas de consórcios não contemplados, comercialização de energia, entre outros. Até frações de precatórios e produtos de “staking de criptoativos” – em que o investidor cede temporariamente os tokens para autenticação das transações nas blockchains – poderão acabar enquadrados pela CVM como valores mobiliários (o ofício circular não cita nominalmente precatórios e o staking de criptomoedas).

“Temos observado tokens de renda fixa nas plataformas, o que caracteriza uma oferta pública, que se enquadram no conceito de valor mobiliário. Por isso, fizemos a orientação a fim de mitigar possíveis irregularidades e desvios de conduta”, disse ao Valor Bruno Gomes, superintendente de supervisão de securitização da CVM. O tema é um dos mais polêmicos no mundo dos criptoativos e opõe interesses das maiores corretoras de ativos digitais do mundo e de reguladores como a SEC (a CVM dos EUA) e a CFTC (commodities e futuros), que disputam o mandato para supervisionar os criptoativos nos EUA.

Apesar de não criar nenhuma regra nova em particular, a circular deixa claro que é um valor mobiliário qualquer token que: 1) prometa um rendimento, seja fixo ou variável, ao investidor por participar do risco de uma determinada operação financeira ou empreendimento; 2) representa direitos creditórios ou títulos de dívida; 3) seja um investimento coletivo, padronizado; 4) tenha passado por um
intermediário, mesmo que ele tenha apenas calculado o valor das taxas oferecidas; 5) sejam alvo de uma oferta pública por meio de uma “exchange” de criptoativos, tokenizadora ou outros meios, mesmo que não tenha ocorrido uma publicidade explícita.

“Nesses casos, entendemos que há uma operação de securitização, que, se ofertada publicamente, é equiparada ao certificado de recebível, conforme previsto no Marco Legal da Securitização”, disse. Ofertas pequenas de até R$ 15 milhões, no entanto, poderão ser enquadradas na regra de “crowdfunding” (Resolução CVM 88), que já permite a listagem de valores mobiliários, seja equity ou dívida, de startups e empresas de menor porte na forma de token. A regra de crowdfunding, no entanto, é restrita para empresas pequenas, com receita bruta anual de até R$ 40 milhões ou R$ 80 milhões para mesmo grupo econômico. As plataformas devem ter registro obrigatório na CVM. Já as securitizadoras precisam ser uma sociedade anônima de capital fechado.

Na visão dos especialistas, o maior problema da regra de crowdfunding é não prever um mercado secundário que têm liquidez e que funciona bem nas plataformas de ativos digitais. Para Isac Costa, sócio do Warde Advogados, o ofício representa um duro golpe para o setor, que hoje sofre com a predominância das corretoras estrangeiras que se valem de estratégias de “arbitragem regulatória” para dominar o mercado. “A imposição do regime tradicional de ofertas públicas e da obrigatoriedade de negociação e serviços de infraestrutura nos moldes da regulação vigente pode representar um obstáculo difícil de superar, não apenas pelos custos de observância, mas também pelas taxas praticadas pelos participantes regulados e pela própria natureza do armazenamento descentralizado de dados”, disse.

“Em seu posicionamento, a CVM adota uma intepretação bastante extensiva do conceito de certificado de recebíveis e de requisitos do chamado “Howey test” para abarcar um grande número de tokens de recebíveis dentro do conceito de valor mobiliário. Isto tem, por efeito prático, paralisar o desenvolvimento dessa indústria – uma vez que a regulação do mercado de capitais ainda não é adaptada às ofertas de ativos tokenizados – e ainda produz insegurança sobre operações já realizadas e que, na interpretação dos agentes de mercado, não seriam valores mobiliários. A solução proposta pela CVM – a realização de operações via crowdfunding – é insatisfatória pelas limitações impostas às plataformas e não contribuirá para desenvolvimento do mercado”, disse Erik Oioli, sócio do VBSO.

Tokenizadoras reclamam

A Abcripto (Associação Brasileira da Criptoeconomia) fez uma das mais contundentes críticas ao posicionamento da CVM, argumentando que essa caracterização poderá até inviabilizar o mercado nascente de tokenização no país, que permitiu operações de financiamento a custos competitivos de empresas sem acesso ao mercado de capitais tradicional.

Para a associação, a CVM não ouviu as tokenizadoras para entender as razões dos procedimentos adotados nem conferiu tempo para que os prestadores de serviço se adaptem ao formato. Normalmente, novas regras do mercado de capitais são colocadas em audiência pública e só depois é que são editadas. Antes de entrar em vigor, a CVM dá um tempo para que todos os participantes adaptem a tecnologia e os processos internos. “O ofício não dá esse tempo. Começa a valer de imediato. O instrumento poderia ter sido melhor”, disse Bernardo Srur, presidente-executivo da associação.

Daniel Coquieri, CEO da Liqi, não concorda com a opção apresentada pela CVM de usar a regra de crowdfunding, que não foi criada para endereçar demandas da tokenização. “É querer usar uma norma que não foi criada para isso. Temos o Banco Central com uma agenda de inovação e de tokenização com o real digital. A CVM tem que olhar isso com mais atenção e manter o diálogo com o mercado”, disse.
Já Carlos Ratto, CEO da Vórtx QR Tokenizadora, que participa do Sandbox da CVM, afirma que recebeu com “bons olhos” o fato de ter uma regra para investimentos tokenizados e que isso traz mais credibilidade para o que está sendo oferecido.

“Vejo com bons olhos, mas a CVM não pode pesar a mão a ponto de tornar os custos proibitivos e colocar em risco os benefícios da tokenização”, disse. O MB (Mercado Bitcoin), controlador da maior tokenizadora no país, afirmou em nota que a tokenização de ativos é um dos mecanismos mais eficientes, seguros e transparentes de democratizar o acesso a produtos financeiros. “Pioneiro no setor, o MB já lançou 76 produtos de renda fixa digital desde 2019, tokenizando uma ampla variedade de ativos, permitindo que investidores de todos os portes e perfis tenham acesso a classes de investimentos que até então eram disponibilizados apenas para tesourarias, clientes institucionais e fundos. Sempre mantivemos diálogo aberto, constante e construtivo com a CVM, e buscamos a autarquia para melhor compreensão do ofício.”

Linguagem adequada

Segundo a CVM, a caracterização de um determinado ativo como valor mobiliário independe de uma manifestação prévia da autarquia. “Os agentes privados devem sempre avaliar se a regulação do mercado de capitais é aplicável aos ativos distribuídos. Caso os tokens se caracterizem como valores mobiliários, devem ser respeitadas as normas sobre registro de emissores e sobre ofertas públicas”,
afirmou.

A CVM lembra que as plataformas precisam atender os critérios de divulgação de informações específicas sobre os ativos tokenizados, particularmente em relação aos riscos envolvidos, em “linguagem adequada” para compreensão pelo público em geral, como nos demais valores mobiliários. O objetivo é promover transparência informacional – o chamado princípio de “full and fair disclosure”-, tendo em vista as particularidades técnicas dos ativos digitais.

 

Artigo publicado originalmente no site do Valor Econômico. Clique aqui para acessar.