JOTA – A reorganização das cooperativas e o agronegócio

JOTA – A reorganização das cooperativas e o agronegócio

Iniciativas como o PL 815/22 merecem maior debate e levantamento dos subsídios necessários.

Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o PL 815/2022, cujo objeto é disciplinar “a reorganização da sociedade cooperativa, com o objetivo de preservar a atividade econômica, a identidade da cooperativa, a continuidade de atos cooperativos, o emprego dos trabalhadores e os interesses dos credores”.

A preocupação do legislador com o equilíbrio econômico-financeiro das cooperativas é legítima, e os números a respeito do tema não deixam dúvidas: no agronegócio, setor que vem a ser o foco do presente artigo, as cooperativas apresentam dados superlativos, sendo contabilizadas em 1.173, as quais possuem mais de um milhão de produtores rurais cooperados, empregam mais de 200 mil pessoas e representam 53% da produção de grãos do país, segundo dados da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

A importância das sociedades cooperativas ao agronegócio tem fundamentos econômicos diversificados, como a organização da atividade de produção no âmbito das cadeias agroindustriais e a integração entre agentes em contexto de diversidade regional e de extensão territorial. Isto, porque possibilitam, principalmente por meio de ganhos de escala propiciados pela reunião de diversos produtores rurais sob objetivos em comum, a sua integração a redes contratuais sob condições mais equilibradas, o que se mostra especialmente relevante aos pequenos produtores.

Além disso, as cooperativas se mostram importantes também do ponto de vista das técnicas utilizadas na produção agrícola, uma vez que fornecem, aos seus cooperados, assessoria especializada com vistas a auxiliá-los na obtenção de maiores índices de produtividade no campo.

Embora destacada a relevância de iniciativas como a do PL 815, tendo em vista o impacto que crises econômico-financeiras das cooperativas poderiam causar ao agronegócio e outros setores da economia, também demonstra que projetos legislativos acerca do tema precisam ser elaborados e debatidos com cuidado e profundidade, sob pena de se tornarem inócuos ou de gerarem desincentivos aos agentes econômicos, o que guarda relação com a eficácia de determinado regime jurídico.

O PL 815 possui méritos: são exemplos a introdução de alternativas de reorganização judicial e extrajudicial às cooperativas, de modo a colocar fim às vacilações dos tribunais brasileiros quanto à legitimidade das cooperativas ao ajuizamento de recuperação judicial, bem como a criação de ritos processuais dotados de maior celeridade, com vistas a impedir que processos de reorganização se prolonguem em demasia, como ocorre com certa frequência nos processos concursais regulados pela Lei nº 11.101/2005.

Se os prós do PL 815 são evidentes, também estão presentes contras a serem mais bem avaliados. Como exemplo, pode-se citar os possíveis incentivos gerados aos credores para que votem de forma contrária ao plano de reorganização proposto pela cooperativa em crise, dado que a não aprovação da proposta desvinculará o credor da classe que rejeitou o plano: de acordo com o texto em tramitação, “o Plano de Reorganização será colocado em votação em cada uma das classes e as vinculará isoladamente, com efeitos de novação para o respectivo crédito que o aprovar, independentemente dos demais” e“a classe que não aprovar o Plano de Reorganização poderá seguir com as cobranças e execuções das obrigações originais”.

Ora, vê-se com clareza que, no âmbito da Lei nº 11.101/2005, da qual o PL 815 retira inspiração, os princípios básicos de funcionamento do processo de recuperação judicial são os de que 1) aprovado o plano de recuperação judicial por determinada classe, todos os credores a ela pertencentes, ainda que tenham votado de forma contrária, aos seus efeitos se sujeitam; e 2) rejeitado o plano por determinada classe, ou o devedor terá sua falência decretada ou, atendidos determinados requisitos, o juízo recuperacional concederá a recuperação judicial com base no cram down.

O PL 815, contudo, aplica lógica diversa, uma vez que é possível votar contra a proposta de reorganização e, mesmo que aprovada, não se sujeitar aos efeitos do processo concursal, o que pode, ante o prosseguimento de cobranças individuais de créditos, prejudicar o cumprimento do plano de reorganização e a razão de ser de todo o procedimento.

Tal situação tem o potencial de gerar insegurança jurídica, tanto às cooperativas em crise, que permanecerão sujeitas a atos de constrição patrimonial, sem o fôlego necessário ao soerguimento de suas atividades, quanto aos credores que tenham votado favoravelmente à reorganização, os quais dificilmente terão a certeza de que a cooperativa terá as condições necessárias de honrar os compromissos assumidos em plano de reorganização. Além disso, formatar o procedimento de reorganização dessa forma tende a acarretar pouca aderência pelos credores.

Em outra passagem, em que trata das obrigações excluídas dos efeitos do processo de reorganização, o texto menciona “as obrigações decorrentes dos atos cooperativos” “as obrigações derivadas de Cédulas de Produto Rural reguladas pela Lei nº 8.929, de 22 de agosto de 1994, além dos créditos que tenham sido utilizados na formalização de Certificados de Direito Creditório do Agronegócio (CDCA), Letra de Crédito do Agronegócio (LCA), Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), previstos na Lei nº 11.076, de 30 de dezembro de 2004 e de créditos garantidos por Patrimônio Rural em Afetação regulado pela Lei nº 13.986, de 07 de abril de 2020.”

Ainda, a previsão que trata das obrigações excluídas dos efeitos do processo de reorganização também merece ser objeto de reflexão, dado que o PL 815 traz amplo rol de obrigações não sujeitas aos efeitos do processo de reorganização com referências expressas a diversos títulos de crédito, inclusive, de forma mais ampla do que realizado pela Lei nº 11.101/2005, aquelas derivadas de Cédulas de Produto Rural (CPR), o que se mostra preocupante no caso das cooperativas agrícolas, cujas obrigações são especialmente representadas pelos atos cooperativos e pelos títulos do agronegócio acima mencionados.

Solução diversa foi aquela fornecida pelo artigo 11 da Lei nº 8.929/1994, o qual, ciente da relevância das CPRs ao fomento do agronegócio, dotou-as de caráter extraconcursal, desde que de liquidação física e que tenham sido emitidas em troca de antecipação parcial ou total do preço ou representando operação de troca de insumos (barter).

Ainda no contexto das inconsistências do PL, aponta-se o fato de que o stay period, período durante o qual demandas executivas e atos constritivos em face do devedor permanecem suspensos, poderá adquirir duração ilimitada, o que, sem dúvida alguma, contraria a correta intenção do próprio PL de atribuir maior celeridade e efetividade aos processos de reorganização das cooperativas.

Por fim, quanto a uma das principais e interessantes novidades do PL – a constituição de fundos de investimento por credores e instituições financeiras com vistas ao financiamento das atividades da sociedade cooperativa em crise – a previsão poderia vir acompanhada de necessário detalhamento no texto sob análise do poder legislativo, de modo que necessita ser objeto de maior aprofundamento nas próximas rodadas de discussão da Câmara dos Deputados.

A relevância do tema objeto do PL, em especial se tratando de legislação concursal, que acarreta efeitos complexos no mercado, enseja a busca de informações até então não refletidas na exposição de motivos. Nesse ponto, vemos como oportuna a realização de estudo jurimétrico e/ou análise de impacto regulatório prévios para avaliar o perfil de endividamento das cooperativas nos diversos setores econômicos, de modo que o caminho legislativo seja pavimentado com maior controle e segurança.

Não há dúvidas de que a regulação de modalidades de reorganização das cooperativas, ainda mais em contexto no qual estas se mostram cada vez mais relevantes ao bom funcionamento das cadeias agroindustriais, mostra-se essencial para o fortalecimento do cooperativismo e de todas as virtudes oriundas de tal modelo de produção.

Iniciativas legislativas como essa merecem maior debate e levantamento dos subsídios necessário, para uma análise detalhada de impacto regulatório, uma vez que tendem a produzir efeito contrário àquele inicialmente desejado, fazendo com que os agentes econômicos passem a preferir a ausência de regulação, haja vista que aquela existente passa a, no lugar de eliminar, produzir insegurança jurídica e imprevisibilidade.

 

RENATO BURANELLO – Doutor em Direito Comercial pela PUC-SP. Coordenador do Curso de Direito do Agronegócio do Insper. Diretor da ABAG. Membro da Câmara de Crédito, Comercialização e Seguros do Ministério da Agricultura e do Conselho Superior de Agronegócio da Fiesp. Sócio do VBSO Advogados

JOSÉ AFONSO LEIRIÃO FILHO – Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP e sócio do VBSO Advogados

CARLOS GALUBAN NETO – Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Advogado do VBSO Advogados

 

Reportagem publicada pelo JOTA em 23 de junho de 2022, disponível neste link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-reorganizacao-das-cooperativas-e-o-agronegocio-23062022