CONJUR – Parecer 41/CVM: sociedades anônimas do futebol e o mercado de capitais

CONJUR – Parecer 41/CVM: sociedades anônimas do futebol e o mercado de capitais

Por Gabriel Arisa, advogado da área de M&A e Societário

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou, no último dia 21 de agosto, o Parecer de Orientação n° 41/2023, com intuito de oferecer ao mercado e seus agentes orientações gerais sobre as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) e o mercado de valores mobiliários.

A fim de catalisar o processo de restruturação das dívidas e financiar projetos de investimento no âmbito da indústria do futebol, as SAFs foram incorporadas ao ordenamento jurídico pela Lei 14.193/2021, que inovou ao trazer o conceito de empresarialidade à tal indústria e possibilitar, a partir da profissionalização dos clubes por meio da transformação desses em companhias, o acesso a múltiplos instrumentos que permitem a captação de recursos da poupança popular.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou, no último dia 21 de agosto, o Parecer de Orientação n° 41/2023, com intuito de oferecer ao mercado e seus agentes orientações gerais sobre as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) e o mercado de valores mobiliários.

A fim de catalisar o processo de restruturação das dívidas e financiar projetos de investimento no âmbito da indústria do futebol, as SAFs foram incorporadas ao ordenamento jurídico pela Lei 14.193/2021, que inovou ao trazer o conceito de empresarialidade à tal indústria e possibilitar, a partir da profissionalização dos clubes por meio da transformação desses em companhias, o acesso a múltiplos instrumentos que permitem a captação de recursos da poupança popular.

A relação entre as SAFs e o mercado de capitais tem sido objeto de análise e discussão há bastante tempo, especialmente diante de um contexto de superendividamento histórico dos clubes, mesmo dentro de uma indústria capaz de movimentar quase US$ 300 bilhões por ano [1].

O futebol, à semelhança de qualquer outra atividade econômica, requer recursos para seu contínuo desenvolvimento, particularmente em um mercado onde o custo das operações, aquisições de talentos e infraestrutura atinge proporções multimilionárias. Enquanto associações, os clubes brasileiros dispõem de poucos instrumentos para acessar investidores do mercado de capitais e, na carência de financiadores de mercado, emerge a necessidade de recorrer a fontes e arranjos alternativos de financiamento, composto por diferentes agentes que, muitas vezes, impõem condições desvantajosas, gerando dependência e perpetuando um ciclo de crise que somente poderá ser superado mediante revisão estrutural do atual modelo de financiamento.

O Parecer de Orientação n° 41/2023 da CVM apresenta-se com o propósito de conciliar as disposições da Lei das SAFs, da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações) e das regulamentações da própria CVM, de modo a mitigar potenciais dúvidas dos agentes de mercado e sincronizar as leis e normas dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

Ao aderir às regras estabelecidas pela CVM, as SAFs ficam aptas a captar recursos no mercado de capitais mediante o aprimoramento dos mecanismos de transparência e governança corporativa, aspectos cruciais para promover a confiança dos investidores e a sustentabilidade financeira. Ressalta-se que, em que pese grandes clubes brasileiros, tais como Cruzeiro, Vasco, Botafogo, Cuiabá e Bahia, já terem aderido à SAF [2], todos o fizeram na forma de SAF fechada e os investimentos foram captados de forma privada, sem aderência às regras da CVM para acesso ao mercado de capitais.

Nesse contexto, a CVM assume um papel crucial, estabelecendo diretrizes que viabilizam o acesso das SAFs ao mercado de capitais por meio de diversos instrumentos. A abertura de capital — também conhecida como por seu termo em inglês initial public offering (IPO) , a emissão de debêntures e a securitização destacam-se como meios que permitem a captação de recursos e a promoção de uma estrutura financeira mais sólida.

A abertura de capital, um dos instrumentos mais emblemáticos contemplados pelo Parecer de Orientação n° 41/2023, permite que as SAFs emitam ações e as negociem em bolsas de valores. Isso não apenas proporciona uma fonte de financiamento alternativa, mas também amplia a base de acionistas, fomentando maior transparência e prestação de contas por parte das entidades. Caso decida realizar uma oferta pública inicial de ações, a SAF estará sujeita ao mesmo arcabouço normativo aplicável às companhias abertas em geral, consubstanciado principalmente nas Resoluções CVM nº 80/2022 e nº 160/2022, que abordam temas como os regimes de registro de emissor de valores mobiliários e as ofertas públicas de distribuição, primária ou secundária, dos referidos valores mobiliários.

Ainda com relação à abertura de capital, vale destacar que a SAF que se registrar na CVM como companhia aberta: (1) deverá contar com uma classe específica de ação ordinária, denominada na Lei das SAFs como classe “A”, para subscrição exclusiva pelo clube ou pessoa jurídica original constituinte da SAF[3]; e (2) poderá criar uma classe de ações ordinárias sem voto plural e, caso entenda conveniente, outra classe de ações ordinárias com voto plural, ambas distintas da classe A, o que torna a SAF aberta a única espécie de companhia aberta habilitada a emitir três classes distintas de ações ordinárias [4].

O Parecer de Orientação n° 41/2023 da CVM deixa claro, também, que as ações classe A não poderão ser alienadas a terceiros, e, pois, não estarão admitidas à negociação em bolsa ou mercado de balcão, uma vez que os direitos conferidos pelas ações classe A são inerentes à condição da pessoa jurídica constituinte da SAF, e, portanto, são considerados direitos personalíssimos. Por outro lado, a CVM não vislumbra impedimento para que o clube ou a pessoa jurídica original titular de ação classe A adquira ação preferencial ou ordinária comum, aplicando-se, o disposto na Lei das Sociedades por Ações.

A emissão de debêntures se apresenta como outra opção para alavancagem das SAFs. As debêntures são títulos de dívida que as SAFs podem emitir para captar recursos junto a investidores. Essa modalidade de financiamento confere flexibilidade às SAFs à medida em que estabelecem as condições dos títulos, como prazos, taxas de juros e garantias oferecidas. Através dessa ferramenta, as SAFs conseguem diversificar suas fontes de recursos e potencialmente obter condições mais vantajosas em comparação com empréstimos tradicionais. Ao ofertar as debêntures publicamente, a SAF deverá observar, além das disposições da Lei das Sociedades por Ações e da Lei das SAFs, a regulação da CVM, com destaque para Resoluções CVM nº 77/2022 e nº 81/2022 que tratam, respectivamente, de aspectos relacionados a aquisição de debêntures de própria emissão e a assembleias de debenturistas.

Vale ressaltar que a CVM deixou claro no Parecer de Orientação n° 41/2023 que as SAFs estão autorizadas a recomprar as debêntures-fut de própria emissão ofertadas publicamente, exceto em casos de liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, e desde que cumpram as disposições da Resolução CVM nº 77/2022 [5].

Uma das dúvidas que surgiram após a promulgação da Lei das SAFs referia-se à possibilidade de emissão de outros valores mobiliários pelas SAFs além das debêntures-fut, diante do veto do artigo 27 de referida Lei, que mencionava expressamente tal possibilidade. Contudo, por meio do Parecer de Orientação n° 41/2023, a CVM deixou claro que as SAFs poderão emitir quaisquer outros valores mobiliários previstos para emissão por sociedades anônimas, inclusive debêntures tradicionais, uma vez que a motivação do veto do artigo 27 da Lei das SAFs não foi estabelecer que as debêntures-fut seriam as únicas pelas quais as SAF poderiam se financiar via mercado de capitais, mas apenas não dar margem a interpretações equivocadas de que as SAFs poderiam ofertar quaisquer valores mobiliários previstos na Lei de Sociedades por Ações ou na regulamentação editada pela CVM [6].

Outro meio de acesso que as SAFs passaram a ter ao mercado de capitais é o crowdfunding de investimento, que consiste na captação de recursos por meio de oferta realizada em plataforma eletrônica, permitindo-se acesso ao mercado de capitais com simplificação de responsabilidades e redução de custos. Apenas sociedades empresárias de pequeno porte, ou seja, com receita bruta anual de até R$ 40 milhões podem captar recursos por meio do crowdfunding, sendo que a captação é limitada ao valor anual de R$ 15 milhões. Nesse caso, tanto a oferta quanto o emissor são dispensados de registro junto à CVM, nos termos da Resolução CVM 160/2022 (para oferta) e da Resolução CVM 80/2022 (para emissor).

Uma das notícias mais celebradas pelo mercado com a divulgação do Parecer de Orientação n° 41/2023 foi o posicionamento da CVM no sentido de que as ações de emissão das SAFs abertas podem ser objeto de investimento por Fundo de Investimento em Ações [7]. Além dos Fundo de Investimento em Ações, o Parecer de Orientação n° 41/2023 da CVM também menciona outras categorias de fundos de investimento que podem ser utilizados pelas SAFs a depender da finalidade que se pretenda alcançar no contexto da captação, quais sejam: (1) Fundos de Investimento em Participações (FIP); (2) Fundos de Investimento Imobiliários (FII); e (3) Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC).

Os FIPs atuam no segmento de mercado comumente denominado de private equity e venture capital, caracterizado pelo investimento de risco em empresas com potencial de crescimento, para retorno em médio e longo prazo. Com relação às SAFs, o investimento poderia se dar através da compra de participação societária ou títulos conversíveis ou permutáveis em participação societária, seja por meio de aquisição em bolsa ou mercado de balcão no caso de SAFs abertas ou por meio de aquisições privadas. Outra estrutura interessante aplicável aos FIPs seria como instrumento para concentração de investidores na SAF, fomentando o investimento e a profissionalização da gestão da SAF antes de uma possível abertura de capital.

Já os FIIs poderiam ser utilizados para viabilizar projetos do interesse das SAFs no mercado no imobiliário, tais como como a construção ou reforma de estádio ou outros imóveis. Nesse modelo, os investidores podem se tornar sócios indiretos do estádio ou centro de treinamento, recebendo desde o aluguel até a bilheteria de jogos e eventos.

A securitização, por sua vez, apresenta-se como uma alternativa que permite que as SAFs convertam seus ativos futuros em títulos negociáveis no mercado de capitais, seja estruturada por meio de fundo de investimento ou por emissão de espécie de certificado de recebível. Em tais operações, as SAFs podem antecipar o recebimento de direitos creditórios de sua titularidade por meio de sua cessão, normalmente com um desconto, para fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) e companhias securitizadoras. Esse processo possibilita antecipar receitas provenientes, por exemplo, de contratos de patrocínio, vendas de ingressos ou direitos de transmissão. Ao securitizarem esses ativos, as SAFs podem captar recursos imediatos, aliviando pressões financeiras e refinanciando passivos existentes.

É importante observar que a relação entre o Parecer de Orientação nº 41 da CVM e a profissionalização da indústria do futebol não se limita aos instrumentos de acesso ao mercado de capitais e a questões financeiras. A adesão a tais práticas também pode incentivar uma melhora na governança corporativa das SAFs. A busca por investidores e a necessidade de divulgar informações precisas e transparentes contribuem para uma cultura de prestação de contas mais sólida, bem como para a implementação de boas práticas administrativas.

Em conclusão, o Parecer de Orientação nº 41 da CVM representa um avanço significativo para as SAFs, oferecendo orientações claras e abrangentes sobre como essas entidades podem acessar o mercado de capitais, mas sem o intuito de esgotar os debates em relação ao tema, ainda incipiente e em fase de construção e consolidação.

Através de instrumentos como a abertura de capital, a emissão de debêntures e a securitização, as SAFs podem fortalecer suas estruturas financeiras, obter recursos para investimentos e enfrentar o histórico endividamento que aflige muitos clubes. Ao mesmo tempo, esse processo favorece a melhoria da governança corporativa, estabelecendo bases sólidas para o crescimento sustentável das SAFs no cenário esportivo e econômico.

[1] https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/09/27/futebol-movimenta-o-equivalente-ao-pib-da-finlandia-diz-presidente-da-fifa.ghtml. Verificado em 30 de agosto de 2023.

[2] https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/brasileirao-das-safs-os-clubes-que-viraram-empresas-quem-estuda-virar-e-os-que-rejeitam-a-ideia/. Verificado em 30 de agosto de 2023.

[3] O art. 2º, §2º, VII da Lei das SAFs dispõe que “a Sociedade Anônima do Futebol emitirá obrigatoriamente ações ordinárias da classe A para subscrição exclusivamente pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu”. Essa classe de ações atribui ao constituinte da SAF o direito de veto em matérias sensíveis, enquanto tal classe de ações representar, pelo menos, 10% (dez por cento) do capital social votante ou do capital social total. Além disso, dependem da aprovação do titular das ações classe A qualquer alteração no estatuto SAF para modificar, restringir ou subtrair os direitos conferidos por essa classe de ações, ou para extinguir a ação ordinária da classe A, independentemente da participação no capital social.

[4] O art. 16-A da Lei das Sociedades por Ações dispõe que “Art. 16-A. Na companhia aberta, é vedada a manutenção de mais de uma classe de ações ordinárias, ressalvada a adoção do voto plural nos termos e nas condições dispostos no art. 110-A desta Lei”. Todavia, com previsão em lei especial da obrigatoriedade da emissão de ações ordinárias de classe A, que somente pode ser subscrita por seu constituinte, a CVM entendeu que é permitida à SAF aberta a emissão de três classes distintas de ações ordinárias, em observância ao princípio da especialidade.

[5] Em que pese o art. 26, III, da Lei das SAFs mencionar a “vedação à recompra da debênture-fut pela Sociedade Anônima do Futebol ou por parte a ela relacionada e à liquidação antecipada por meio de resgate ou pré-pagamento, salvo na forma a ser regulamentada pela Comissão de Valores Mobiliários”, a CVM entendeu que as preocupações que pairam sobre recompras das debêntures-fut são semelhantes às que se aplicam a recompras de debêntures em geral, e tendo em vista que essas foram tratadas no âmbito da Resolução CVM 77, autorizou as SAF a recomprar as debêntures-fut de própria emissão ofertadas publicamente.

[6] Nas razões de veto do art. 27 da Lei das SAFs, o legislador mencionou que “em que pese se reconheça o mérito da proposta, a medida contraria o interesse público, pois geraria insegurança jurídica, tendo em vista que poderia ensejar na interpretação de que que qualquer título que já tenha ou venha a ter previsão na Lei nº 6.404, de 1976, ou na regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários poderia ser emitido pelas Sociedades Anônimas do Futebol, isto é, nenhuma limitação poderia ser imposta a tais agentes enquanto emissores de valores mobiliários. Ocorre que há diversos instrumentos passíveis de emissão no mercado de capitais, muitas vezes sujeitos a regime específicos, que consideram, dentre outros fatores, a natureza do emissor. Alguns exemplos são os títulos que somente podem ser emitidos por instituições financeiras e os títulos ou contratos de investimento coletivo previstos no inciso IX do caput do art. 2º da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976”.

[7] Fundo de Investimento em Ações é um dos tipos de Fundos de Investimento Financeiro – FIF, regulados pelo Anexo Normativo I da Resolução CVM 175.