Globo – Criptos: a regra (ainda não) é clara, mas promete avançar em 2023

Globo – Criptos: a regra (ainda não) é clara, mas promete avançar em 2023

Muitos pioneiros estão esperneando, mas regulação do mercado começou e deve ser ampliada ano que vem, com FTX como catalisadora

Muitos pioneiros estão esperneando e indignados com os rumos que as regras do mercado de criptomoedas passaram a tomar. Mas o fato é que o conceito libertário e alternativo ao sistema financeiro tradicional, que está na raiz das criptos, foi parar na UTI em 2022.

Este ano pode ser considerado um divisor de águas no funcionamento do mercado cripto, com autoridades, investidores e sociedade cobrando e implementando regras e normas específicas e mais rígidas para trazer mais segurança e higidez nas atividades das empresas do ecossistema. E as grandes economias optaram por implementar ou no mínimo discutir seriamente a regulamentação do setor, uma vez que a autorregulação apregoada pelos puristas não conseguiu impedir prejuízos, fraudes e má gestão.

O principal catalisador das mudanças no Brasil e nomundo, e que seguirá influenciando a pauta em 2023, foi a falência da FTX, com a evaporação de bilhões de dólares de milhares de investidores em todo o mundo.

“É Importante ressaltar que o regulador tende a agir quando existe comoção, quando há um volume representativo que demanda atenção”, explica Gilmar Magi, diretor de fraude e risco da Pomelo, fintech de infraestrutura para produtos e serviços financeiros, acrescentando que o movimento em torno da regulamentação demonstra que o mercado cripto “cresceu, atingiu um volume relevante e caminha para um amadurecimento”.

Para Magi, à medida que as “regras do jogo” são definidas pelo regulador, de maneira saudável e sem restringir negócios, elas podem acelerar esse crescimento e garantir a segurança de quem investe, mudando também a percepção popular sobre cripto.

“Hoje, infelizmente, há uma imagem negativa pairando sobre o mercado cripto para a população em geral e para grandes investidores, em função de golpes, fraudes e negócios não sustentáveis que ocorrem com frequência”, lembra. “Com uma regulamentação saudável e atuação presente de um órgão fiscalizador que conheça o mercado cripto, devemos ver cada vez menos casos negativos e mais pessoas terão confiança para acessar um mercado em expansão.”

“A regulação é um caminho sem volta. Irá ocorrer no Brasil, nos EUA e em outros lugares do mundo”, reforça João Kamradt, diretor de pesquisa e investimentos da Viden Ventures. “É a forma de possibilitar uma maior adoção e gerar uma maior segurança ao investidor. Mais do que pensar nos grandes operadores do mercado, é necessário observar os investidores de varejo, realizando mudanças que tornem a adoção possível, mas sem impedir a descentralização e a privacidade, características caras ao público cripto.”

Mercado doméstico
Em discussão desde 2015, finalmente o Congresso Nacional deu andamento ao chamado Marco Legal das Criptomoedas, com a votação e aprovação do projeto de lei 4.401/2021. Alguns pontos críticos do projeto, como a segregação de ativos, ficaram de fora do texto aprovado. De qualquer forma, o projeto final foi bem recebido pela maioria dos participantes de mercado e especialistas jurídicos.

Nicole Dyskant, chefe global do jurídico e compliance da Hashdex, destaca as regras estabelecidas para os prestadores de serviços de ativos virtuais (na sigla em inglês, VASP, Virtual Asset Service Provider), isto é, todas as empresas envolvidas no segmento, como exchanges e custodiantes, que passarão a ser regulados e supervisionados por órgão do Poder Executivo. A aposta unânime do mercado é que a incumbência ficará com o Banco Central, que estabelecerá as normas infralegais.

Magi aponta que a definição do BC como órgão regulador deve ser muito positiva, “dada a semelhança de papel com a regulamentação das Instituições de Pagamento, que viabilizou o movimento crescente de fintechs e inovação de serviços financeiros que vemos hoje no mercado brasileiro”.

O Banco Central tem sido reconhecido por sua agenda positiva e favorável à inovação no sistema financeiro, dizem os agentes de mercado. Para Juliana Walenkamp, diretora de vendas institucionais da BitGo, empresa especializada em custódia de criptoativos, a autoridade monetária brasileira “se posiciona cada vez mais pró-inovação e desenvolvimento tecnológico”.

Erik Oioli, sócio do VBSO Advogados, explica que, após a sanção, a lei entra em vigor em seis meses. A partir daí, se confirmado, o BC tem mais seis meses para regulamentar a parte infralegal – ou seja, há ainda mais um ano para a coisa se consolidar. “Por outro lado, com o avanço do projeto de CBDC (Real Digital) é possível que tenhamos outras novidades regulatórias para viabilizar o uso da tecnologia blockchain como infraestrutura no mercado financeiro”, aponta Oioli.

Mateus Lopes da Silva Leite, sócio do Candido Martins Advogados, destaca que, como a segregação de ativos ficou fora da lei aprovada, o tema deverá ser retomado no próximo ano, assim como as regras aplicáveis ou flexibilização das normas existentes para os criptoativos que se enquadrem no conceito de valores mobiliários, que ficaria sob a competência da CVM.

“O Marco Legal das criptos optou por excluir o dever de segregação patrimonial, ou seja, deixando aberta a possibilidade de utilização das criptos depositadas pelos clientes para empréstimo a terceiros, por exemplo, tal como uma instituição financeira, mas os eventos recentes, como o caso da FTX e outras exchanges, mostram que esse assunto merece ser melhor debatido”, observa Leite.

Antes da mais recente medida, que permitirá o investimento de fundos diretamente em ativos digitais, a CVM divulgou em outubro um parecer ao mercado com orientações sobre investimentos em criptoativos, em que consolidou todos os entendimentos a respeito de eventuais normas aplicáveis e sua atuação sobre o assunto. O presidente da autarquia, João Pedro Nascimento, declarou mais de uma vez que a CVM vai tomar conta dos criptoativos que sejam representação digital de um valor mobiliário ou que tenham as características de contrato de investimento coletivo, negociados com a proposta de oferecer rendimento e que tenham esforços de distribuição de terceiros.

Em entrevista recente, Nascimento reforçou que a segregação patrimonial vai voltar a ser discutida. “Precisamos trazer a segregação patrimonial para as exchanges. Não sou eu quem está dizendo isso, e sim a FTX”, afirmou referindo-se à falência da exchange global, que atraiu até mesmo “investidores muito preparados”.

Lá fora
No maior mercado financeiro do mundo, autoridades norte-americanas estão buscando conciliar seu tradicional liberalismo com ações de proteção aos investidores e ao sistema em si. Uma regulamentação federal tem sido estudada, mas ainda sem aprovar nada de concreto, até o momento.

No início do ano, um decreto do presidente Joe Biden estabeleceu um conjunto de diretrizes abrangentes, instruindo as entidades federais dos EUA a abordar a crescente relevância dos ativos digitais e desenvolver estudos e propostas ao longo do ano. “A linguagem positiva do documento ajudou a legitimar a indústria de ativos digitais e contrastou diretamente com o desenvolvimento regulatório mais relevante do ano anterior, a proibição de criptomoedas na China”, observa Nicole, da Hashdex.

Para ela, o colapso da FTX será o evento que mais importará em 2023, mas “não está claro como os reguladores responderão ao episódio, dado o papel ativo do fundador da FTX com os formuladores de políticas dos EUA.”

Nicole pontua que os reguladores do mundo todo foram pegos “de surpresa” pela falência da FTX, “e haverá um novo impulso para a regulamentação global de criptoativos”. “Esperamos que o foco das novas regulações seja exigir a segregação patrimonial entre os prestadores de serviços de negociação e custódia, bem como maior transparência de serviços, conflitos de interesses e operações com partes relacionadas, além de exigências de regras de governança, controles internos e gestão de riscos”, afirma.

Outro destaque é o debate em torno da classificação de criptomoedas como valores mobiliários ou commodities, que permanece indefinido nos EUA. Nicole explica que as implicações incluem se a SEC ou a Commodity Futures Trading Commission (CFTC) exercerão poder regulatório sobre as criptomoedas no país. Segundo ela, dois projetos de lei no Senado tratam diretamente dessa questão e apresentam estruturas que classificariam a maioria dos criptoativos como commodities e os colocariam sob a supervisão da CFTC.

Juliana, da BitGo, cita ainda que as exchanges centralizadas (CeFi) que operam nos Estados Unidos, já deverão reportar a atividade de seus usuários para a IRS (a Receita Federal norte-americana) compartilhando preços de compra e ganhos de capital de cada operação. “Esses movimentos são importantes principalmente para evitar novas fraudes financeiras, pois através de um arcabouço regulatório bem estabelecido há oportunidade para ações de fiscalização e revisões por agências reguladoras federais”, ressalta.

Em contraponto às CeFi, Vinicius Bazan, analista de criptoativos da Empiricus, aponta que o segmento DeFi (Finanças Descentralizadas) também deverá passar por um escrutínio mundial. “Apesar de serem construídas sob uma tese fortalecida, DeFi entrou em um balaio considerado negativo pelos reguladores”, afirma, destacando que o foco principal deverão ser as stablecoins, as criptomoedas pareadas a ativos reais, como dólar e euro.

“As stablecoins ficam muito em evidência também num contexto em que bancos centrais avançam com a suas CBDCs, as moedas digitais emitidas pelas autoridades”, destaca Bazan. “Devemos ver um avanço regulatório para criar bases mais claras, de como regular cada tipo de ativo, o que é valor imobiliário e o que não é, quais são as instituições que devem ser as observadoras de cada frente.”

“Depois do colapso da FTX e seu efeito em cadeia, certamente aumentará a vigilância e verificação do mercado com relação a diversos participantes, não apenas por parte dos reguladores, mas também dos usuários”, resume Henrique Teixeira, diretor global de Novos Negócios da Ripio. “O desafio da indústria é transformar esse aprendizado na criação de regulamentações positivas, que permitam o desenvolvimento da inovação.”

Reportagem publicada pelo Globo em 27 de dezembro de 2022, disponível neste link: https://valorinveste.globo.com/mercados/cripto/noticia/2022/12/27/criptos-a-regra-ainda-nao-e-clara-mas-promete-avancar-em-2023.ghtml?utm_source=linkedin&utm_medium=social&utm_campaign=post