JOTA – A estrangeirização de terras e a necessidade de um novo regime jurídico

JOTA – A estrangeirização de terras e a necessidade de um novo regime jurídico

Por Renato Buranello e José Afonso Leirião Filho*

A aquisição de imóveis rurais por estrangeiros residentes no país e pelas pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil, inclusive equiparadas, deve respeitar os limites impostos pela Lei nº 5.709/1971, legislação que, mesmo após ser reinterpretada por três pareceres emitidos pela Advocacia Geral da União (AGU), incute pouca segurança jurídica aos agentes econômicos do agronegócio, independentemente de sua nacionalidade.

A exposição de motivos da legislação da década de 70 é expressa ao almejar a segurança nacional na edição da norma, contudo, também afirma a intenção de não “exceder-se no rigor das restrições impostas aos estrangeiros, uma vez que o Brasil não só tem recebido contribuições valiosas de imigrantes de várias partes do mundo, como também a tecnologia alcançada por nações mais desenvolvidas deve ser carreada para o nosso país, como contribuição necessária ao nosso desenvolvimento”. Essa motivação, todavia, não se faz refletida na norma vigente.

Após décadas da edição da lei, o resultado é uma sistemática jurídica pouco efetiva, que além de impedir uma melhor integração da produção rural nacional às cadeias globalizadas do agronegócio e, como consequência, limitar a entrada de investidores e de investimentos estrangeiros, tampouco cumpre o desígnio de proteção às possíveis infrações à soberania nacional, dados os poucos recursos de gestão e fiscalização da estrutura administrativa atual.

O modelo doméstico vigente, no que toca às pessoas jurídicas, impede, sob pena de nulidade, a aquisição e o arrendamento de áreas rurais por empresas estrangeiras ou controladas por estrangeiros. Compete, nos termos da Instrução Normativa INCRA nº 88/2017, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a gestão de procedimentos em prol da autorização à aquisição de terras por estrangeiros e equiparados. Em paralelo, resta sob responsabilidade dos Cartórios de Registro de Imóveis de cada comarca a obrigação de manutenção de cadastro especial, em livro auxiliar, das aquisições de terras rurais sob restrição legal, o que se dá de forma não integrada e pouco padronizada.

Diante desse formato, o que se observa na prática é um cenário de insegurança que, aliado às falhas de governança fundiária existentes em geral no país, como a falta de uma base de dados públicos que integre os cartórios de registro de imóveis, a baixa confiabilidade e incompletude de cadeias dominiais em diversas localidades, a carência de informação georreferencial completa das áreas rurais, dentre outras, torna fundamental que o modelo atual seja debatido e revisitado.

Essa necessidade se reflete também ante a judicialização de casos recentes que pretendem comprovação de burla à Lei nº 5.709/1971, hipóteses em que se debate se determinadas estruturas societárias são regulares. Ainda, por se tratar de temática sensível, de alta complexidade técnica e envolvimento de conceitos fundiários e societários, não é incomum que operações societárias lícitas, sejam equivocadamente noticiadas como eventos de grilagem, o que gera exposição negativa ao agente econômico envolvido e consequentemente afugenta outros possíveis investidores estrangeiros que desejem, lícita e regularmente, empreender no país.

A temática foi recentemente levantada pelo Ministério Público Federal (MPF) perante o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1], com vistas ao aperfeiçoamento dos dados públicos disponíveis sobre imóveis rurais adquiridos por estrangeiros por meio do desenvolvimento de um sistema de registro público eletrônico que unifique os bancos de dados dos cartórios brasileiros. O aprimoramento da gestão dos registros públicos de imóveis rurais é avanço indissociável da governança fundiária necessária ao mercado de terras, o que é de relevância a todos os agentes econômicos, não só à problemática da estrangeirização de terras.

Em passado recente, o Projeto de Lei do Senado Federal de nº 2.963/2019 pautou no debate nacional o tema da propriedade e arrendamento de terras por estrangeiros e equiparados, mas, por cindir opiniões e aflorar arroubos ideológicos, teve tímido avanço. Não se trata, a nosso ver, de temática que deva ser contaminada por maniqueísmos ideológicos, haja vista a comprovação de que o citado PL deverá responder dentro da ciência política e processo legislativo interesses em discussão como a participação de fundos soberanos, limites territoriais, reciprocidade e agregação de valor local.

A manutenção de uma visão obtusa do problema terá apenas o efeito de perpetuar as falhas comentadas, o que não nos parece aceitável, dado que se trata de uma questão fundamental à segurança jurídica, em prol da governança fundiária, desde que realizada a partir de concepções técnicas e amplo debate público, para que o Brasil defina uma posição e institua um modelo apropriado a essa importante matéria no melhor desenvolvimento das Cadeias Agroindustriais.

[1] https://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-aborda-aperfeicoamento-na-venda-de-imoveis-rurais-a-estrangeiros-em-audiencia-publica-no-cnj/view

*Renato Buranello e José Afonso Leirião Filho. Respectivamente, Doutor em Direito Comercial pela PUC-SP. Coordenador do Curso de Direito do Agronegócio do Insper. Vice-presidente da ABAG. Membro da Câmara de Crédito, Comercialização e Seguros do Ministério da Agricultura e do Conselho Superior de Agronegócio da FIESP. Sócio do VBSO Advogados e Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP. Sócio do VBSO Advogados

Artigo publicado originalmente no site do JOTA. Clique aqui para acessar.