Jota – A exigência de caução ao sequestro de grãos em operação securitizada

Jota – A exigência de caução ao sequestro de grãos em operação securitizada

O financiamento privado do agronegócio, principalmente a partir da criação da Cédula de Produto Rural (CPR) (Lei 8.929/1994), dos títulos de crédito específicos ao setor (Lei 11.076/2004) e do desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, é essencial para garantir modalidades alternativas de financiamento às cadeias agroindustriais.

A relação entre o mercado de capitais e o agronegócio se estreitou com a criação do Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), título de livre negociação com lastro em direitos creditórios do setor. Para facilitar a compreensão, imagine um produtor rural que possui um estoque de CPR, com vencimento alongado, mas que precisa de “funding” imediato. Em uma securitização, a companhia securitizadora adquire esses recebíveis — lastro da operação —, os securitiza, emite os certificados e os oferece a investidores via colocação no mercado e, com isso, possibilita o financiamento do produtor rural, por meio do adiantamento de recursos a este último.

Operações como esta acima possibilitam mobilização de ativos e se destacam no financiamento alternativo da cadeia produtiva agroindustrial, fato comprovado pelo volume de emissão de CRA em 2021, de R$ 23,1 bilhões, com crescimento de 52,45% em relação ao ano anterior, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).

A emissão dos CRA possibilita a concessão de recursos sem intermediação bancária e a dispersão de riscos entre o credor originário e os investidores, mediante a expectativa de retornos compatíveis aos riscos tomados. Dessa forma, os investidores dividem o risco de inadimplemento da carteira de recebíveis com o produtor rural do exemplo acima. Contudo, o que ocorre quando o próprio produtor rural, após receber seu adiantamento de recursos via securitização, inadimplir com suas obrigações?

Nesse cenário, as securitizadoras, companhias que possuem como objeto social a aquisição dos recebíveis que servem de lastro à operação de securitização, devem tomar as medidas necessárias ao cumprimento de seus deveres fiduciários perante os investidores. No exemplo desta reflexão, em caso de inadimplemento de obrigações do produtor rural no bojo de CPR, que é lastro de CRA, a securitizadora, uma vez resistida a entrega dos produtos agrícolas ou verificados elementos que apresentem risco ao cumprimento da obrigação pelo produtor rural, possui a possibilidade de acionar o Poder Judiciário em busca de ordem judicial para o arresto ou sequestro dos produtos.

O mecanismo processual adequado a tal hipótese é a tutela de urgência, a ser concedida desde que presentes elementos que evidenciem, além da probabilidade da questão jurídica apresentada, perigo de dano ou risco à utilidade da demanda judicial. Em cenário envolvendo produtos agrícolas, de natureza fungível e de fácil desvio ou ocultação, presentes os requisitos acima, a tutela de urgência deverá ser deferida, embora o Código de Processo Civil preveja que “[n]a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer, podendo a caução ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la” (artigo 300, §1º, CPC).

A previsão acima entrega ao julgador a discricionariedade de exigir ou não caução como requisito de cumprimento da liminar em prol da proteção do devedor em caso de reversão da decisão, faculdade que tem sido reiteradamente aplicada em processos que envolvem arresto e sequestro de grãos[1]. Ocorre que o oferecimento de caução pode constituir verdadeiro desafio ou até impossibilidade em hipóteses nas quais uma securitizadora busca assegurar em juízo o recebimento de produtos agrícolas.

A razão disso vem a ser o fato de que, apesar de as operações de CRA em regra envolverem valores de certo vulto, o patrimônio da securitizadora não se confunde com o da operação ante o regime fiduciário instituído sobre os recebíveis, tampouco sendo incomum não existir liquidez nas contas relacionadas à operação, que comumente conta com revolvências. Assim, a securitizadora não deverá arcar diretamente com o valor da caução, tampouco terá possibilidades relevantes para obtenção de seguro-garantia ou carta de fiança, haja vista as exigências patrimoniais normalmente impostas a esses produtos pelas instituições financeiras ou seguradoras.

Dessa forma, a possibilidade de cumprimento de uma liminar nesses moldes será provavelmente afetada pela impossibilidade prática de prestação de caução. A situação é ainda mais grave — e nesse caso mais questionável — em hipóteses em que os produtos buscados tenham sido outorgados em garantia, em regra de penhor rural, pelo produtor rural. No exemplo da CPR, em que o produtor rural recebe antecipadamente o preço e, como emitente, obriga-se a entregar os produtos agrícolas descritos na cártula, conforme as condições e local estipulados, com constituição de penhor agrícola que demonstre exatamente a área de formação das lavouras, a exigência de caução para a realização de ordem de sequestro, em especial quando envolvem securitização, será obstáculo indevido à prestação jurisdicional.

A despeito da constatação pontual de decisões que relativizam a exigência de caução[2], inclusive em cenários como o pontuado[3], não se verifica volume relevante de entendimentos que diferenciem um caso normal de exigência da contracautela com o de securitização. Sequer a existência de garantia tem sido motivo suficiente para a não exigência da contracautela.

Diante disso, é necessário que as características da operação de securitização e as especificidades de títulos e garantias relacionados a produtos rurais sejam levados em consideração, em especial em casos em que há adiantamento de valores ao produtor rural e que envolvam altas cifras que possam impossibilitar o oferecimento da contracautela. Verificada tal hipótese, parece adequado avaliar (i) se o bem objeto da tutela de urgência foi outorgado em garantia ao próprio credor; (ii) se a remoção dos produtos, em regra depositados em armazém de terceiro durante o deslinde da demanda importará em dano irreparável ao devedor; (iii) se o exequente se encontra em cenário de hipossuficiência momentânea suficiente para dispensar a exigência de caução; e (iv) se há a possibilidade de exigir o comparecimento da caução após ultimada a medida liminar, de modo a se caucionar apenas os bens efetivamente localizados.

As sugestões acima buscam provocar reflexão e debate a respeito da exigência da caução nos exemplos trazidos, visto que, apesar de constituir importante alternativa ao julgador, pode, em certos casos concretos, implicar perda total da efetividade da medida judicial, evento que trará reflexos imediatos aos investidores da determinada operação e, diante da reiteração do cenário, tende a afetar a precificação do crédito pelo mercado de capitais, com reflexos também aos produtores rurais tomadores de recursos privados, representando efeito deletério que acarretará custos evitáveis a uma importante alternativa de mobilização de recursos.


[1] Vide TJSP, Agravo de Instrumento nº 2032449-11.2022.8.26.0000, julgado em 14.03.2022.

[2] Vide TJSP, Agravo de Instrumento nº0013047-32.2009.8.26.0000, julgado em 26.08.2009.

[3] Vide TJMT, Agravo de Instrumento nº 0140248-14.2015.8.11.0000, julgado em 11.12.2015.

 

Reportagem publicada pelo Jota em 27 de março de 2022, disponível neste link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/caucao-sequestro-graos-operacoes-securitizadas-27032022