JOTA – A extensão do ‘fim’ do voto de qualidade

JOTA – A extensão do ‘fim’ do voto de qualidade

A extensão do ‘fim’ do voto de qualidade

O ‘fim’ do voto de qualidade é o assunto tributário do momento: a Portaria ME 260 vem consolidar esse status

 

O objetivo deste texto é refletir sobre a ilegalidade da Portaria ME 260 e o alcance do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02 em relação ao voto de qualidade: seria aplicado apenas aos empates ocorridos em julgamentos de mérito ou também a outros casos, como discussões de admissibilidade? Seria aplicado apenas aos processos que tratam de autos de infração e impugnações ou também a outros tipos de processo administrativo, como é o caso de despachos decisórios e manifestações de inconformidade?

O Ministério da Economia pretendeu responder a esses questionamentos da forma mais restritiva possível: com a publicação da Portaria ME 260, em 3 de julho de 2020, indicou-se que o voto de qualidade somente deixou de ser aplicado aos processos que tratam de “exigência de crédito tributário por meio de auto de infração”.

Segundo essa portaria, portanto, o empate no julgamento de outros tipos de processo administrativo continua sendo decidido pelo voto de presidente da turma julgadora. Além disso, o voto de qualidade continuaria aplicável a julgamentos que tratam de questões processuais (exames de admissibilidade, por exemplo) e a conversões em diligência. Para citar mais uma restrição à mudança legislativa, o empate apenas aproveitaria ao “contribuinte”, e não ao responsável solidário.

Como se verá, a Portaria ME 260, apesar de aparentemente baseada na literalidade do artigo 19-E, é ilegal. Para esclarecer esse vício, vale retomar as alterações legislativas sobre o tema: de uma forma ou de outra, o artigo 28 da Lei nº 13.988/20 introduziu limitações ao voto de qualidade.

Ao criar o artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, passou a prever que se houver “empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”, o caso deve ser resolvido de forma favorável ao contribuinte. O voto do presidente da turma, portanto, deixou de ser o critério de desempate.

Qual é a extensão dessa mudança? Ela é ampla e atinge os diferentes tipos de processo e decisões proferidas no âmbito do Carf ou, em linha com a Portaria ME 260, é restrita? A interpretação do artigo 19-E atenta aos demais dispositivos legais pertinentes ao voto de qualidade permite alcançar conclusão consistente.

De forma objetiva, entendemos que o “fim” do voto de qualidade se aplica em relação a qualquer tipo de litígio tributário ou aduaneiro analisado no âmbito do Carf e em relação a qualquer tipo de decisão (seja relativa ao mérito, a questões de admissibilidade ou outras meramente procedimentais).

Como mencionado, o artigo 19-E apresenta referência curiosa ao “julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”. O caput do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72, que trata do processo administrativo fiscal, possui referência muito semelhante, tratando do “processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal”. Não por coincidência, é no artigo 25, mais especificamente no seu parágrafo 9º, que está previsto o voto de qualidade.

De modo geral, o artigo 25 institui as Delegacias da Receita Federal de Julgamento, responsáveis pelo julgamento em primeira instância, e o próprio Carf, responsável pelo julgamento dos recursos de ofício, voluntários e, ainda, especiais.

Mais do que isso, esse artigo fixa os contornos do Carf, como a necessidade de paridade, a forma de designação dos conselheiros e, naturalmente, o voto de qualidade.

Nesse ponto, vale retomar as orientações básicas de interpretação fornecidas pela Lei Complementar nº 95/98: em regra, o papel dos parágrafos de determinado artigo é complementar a norma enunciada no seu caput ou prever exceções.

No caso, o caput do artigo 25 institui órgãos de julgamento de “processos de exigência de tributos ou contribuições”. Complementando essa previsão, o parágrafo 9º estabelece uma das regras sobre o funcionamento de desses órgãos (o voto de qualidade).

Apesar da relação de complementaridade entre o caput e o parágrafo, não há quem argumente que a menção aos processos de “exigência de tributos” no artigo 25 significa que o voto de qualidade somente seria aplicado a esse tipo de processo ou, ainda, somente aos julgamentos que versarem sobre o mérito de casos como esse.

O artigo 25 do Decreto nº 70.235/72 apresenta referência inicial aos processos de “exigência de tributos ou contribuições”, mas a sua verdadeira finalidade é estabelecer a estrutura básica do contencioso administrativo tributário em âmbito federal.

Nesse sentido, a previsão do parágrafo 9º acerca do voto de qualidade aplicava-se independentemente do tipo de processo ou do conteúdo da decisão proferida pelo Carf.

Esse era o cenário até a criação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02. A partir de agora, o voto de qualidade não se aplica mais ao “julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário”.

Diante do cenário anterior, por que então, agora, essa previsão seria aplicada apenas a um tipo de processo ou a alguns tipos de decisão, como pretende a Portaria ME 260?

A abordagem “literal” do artigo 19-E, de que a referência a “processo de determinação e exigência do crédito tributário” limitaria os casos em que o voto de qualidade deixou de ser aplicado, ignora que o artigo 25 do Decreto nº 70.235/72 também trata apenas do “processo de exigência” de tributos.

Nem por isso, no passado, havia quem sustentasse que o voto de qualidade não seria aplicado aos processos que tratam de direitos creditórios, por exemplo.

Vale notar que essa suposta abordagem “literal”, ao manter o voto de qualidade aplicável aos empates envolvendo a admissibilidade de recursos, também ignora que o “julgamento do processo administrativo” não se limita à decisão final proferida por determinado colegiado.

Julgar é, de forma muito simplificada, decidir quanto a um pedido. Converter julgamento em diligência é julgar favoravelmente o pedido formulado pelo contribuinte ou, no limite, providência para obter informações úteis para julgar o pedido do contribuinte.

Analisar a admissibilidade de recurso especial também é julgar, no caso, o pedido formulado pelo contribuinte ou pela Fazenda para que seu recurso seja conhecido. Mesmo se atendo a literalidade do artigo 19-E, parece claro que o voto de qualidade também deixou de ser aplicado a esses casos.

A técnica legislativa adotada na elaboração do artigo 19-E, de fato, é imperfeita e propícia a dúvidas. No anseio de esclarecê-las, a Portaria ME 260 contraria o artigo 19-E e, por consequência, é ilegal.

Como visto, a análise conjunta com o artigo 25 confirma que o voto de qualidade sofreu drástica restrição: deixará de ser aplicado a quaisquer processos administrativos analisados pelo Carf, independentemente do tipo de procedimento, do assunto discutido ou do conteúdo da decisão.

Ainda que alguém não concorde com essa mudança, é essa a lei que, ao menos por enquanto, está vigente e deve ser aplicada.

 

Artigo publicado no JOTA, em 10 de  julho de 2020: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-extensao-do-fim-do-voto-de-qualidade-10072020