Jota – Agronegócio e o PL 4588/21: Desintegração das cadeias agroindustriais

Jota – Agronegócio e o PL 4588/21: Desintegração das cadeias agroindustriais

O crescimento e a eficiência do agronegócio não são uma coincidência, mas frutos de uma visão integrada de atividades, que deixou de contemplar exclusivamente aquelas diretamente ligadas ao cultivo da terra, passando a cuidar de uma extensa cadeia de negócios, que alcança objetos jurídicos variados que vão desde o fornecimento de insumos até a industrialização, comercialização e distribuição, em
mercado interno ou internacional, de alimentos, fibras e bioenergia. O emprego de tecnologia e a verticalização dessas atividades econômicas com a participação de agricultores dinâmicos e determinados são as principais razões para esse desenvolvimento.

A integração às cadeias ou sistemas agroindustriais, conforme ensinamentos dos professores Décio Zylberstajn e Marcos Fava,[1] leva a menores custos de transação por meio “de uma eficiente aquisição de insumos e maquinários, melhorias dos processos internos, acesso às linhas de financiamento adequadas, utilização de ferramentas de comercialização mais vantajosas e melhor gestão do risco”. Diante de
tal cenário, é natural que o ordenamento jurídico busque acompanhar a evolução da atividade de produção rural, criando incentivos e arcabouço legal necessários para que desenvolva suas atividades em formato profissional, em contexto organizado para um melhor ambiente de negócios.

Há, assim, uma virtuosa esteira na regulação do setor, com diplomas que levam a premissas de maior desenvolvimento, menores custos e maiores previsibilidade e segurança jurídica. Assim vemos a Lei 14.112/2020, que reformou a Lei 11.101/2005 de modo a positivar a possibilidade de recuperação judicial do produtor rural pessoa física de atuação em caráter empresarial; a Lei 13.986/2020, a Lei do
Agro, responsável pelo fortalecimento do financiamento privado do agronegócio; e a criação do Fiagro (Lei 14.130/2021), que gera uma relação direta do setor com o mercado de capitais, facilitando a atração de investimentos.

Tal tendência, contudo, pode estar prestes a experimentar retrocessos: atualmente tramita na Câmara dos Deputados o PL 4588/2021, que cria a “Política Nacional de Proteção ao Produtor Rural”. Segundo o texto do projeto, “entende-se por proteção econômica e jurídica ao produtor rural a adoção de medidas que o protejam de práticas abusivas e situações gravosas, com o intuito de garantir o desenvolvimento equilibrado e sustentável de sua atividade”.

Apesar das intenções alegadamente nobres, o PL 4588 acaba por promover uma infantilização do produtor rural, tratando-o não como o agente econômico em um contexto empresarial, mas como uma figura presumidamente hipossuficiente, incapaz de negociar e tomar as melhores decisões na adequada assunção e alocação de riscos. Dessa forma, também desvirtua institutos tradicionais e leva à desintegração da rede contratual comum aos negócios agroindustriais.

O primeiro e mais claro exemplo disso vem a ser o dispositivo segundo o qual caracteriza-se como direito básico do produtor a “readequação das cláusulas contratuais, nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, em especial as decorrentes do risco climático da atividade agrícola, que impliquem perda significativa da produção, com possibilidade de revisão judicial para a busca do reequilíbrio econômico-financeiro da transação”.

Trata-se de previsão que gera enorme insegurança jurídica, uma vez que não apenas contraria a tendência observada a partir da vigência da Lei da Liberdade Econômica, como também diverge da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o assunto, simbolizada pela noção de que “a Teoria da Imprevisão somente se aplica quando for demonstrada a ocorrência, após a vigência
do contrato, de evento imprevisível e extraordinário que onere excessivamente uma das partes contratantes, não se inserindo, nesse contexto, as intempéries climáticas”[2]. Diverge ainda, no trato comercial comum às situações de quebra de safra, ao afastar os livres pactos entre os agentes.

No mesmo contexto, o PL 4588 estabelece o direito de o produtor rural, a depender de seu porte conforme definido no projeto, em operações de financiamento, obter “a prorrogação do prazo de pagamento do débito, ao mesmo encargo financeiro do período de normalidade, quando ocorrer dificuldade de comercialização de produtos, frustração da produção por fatores adversos e eventuais ocorrências graves e prejudiciais ao desenvolvimento da atividade”, prerrogativa que, na verdade, poderá se converter na obrigação do agente financiador conceder a prorrogação requerida, uma vez que o “indeferimento desarrazoado do pedido de prorrogação de prazo de
pagamento acarretará perdas e danos”.

Ainda no que diz respeito ao financiamento do produtor rural, o PL 4588 traz previsão preocupante às instituições financeiras do ponto de vista da segurança jurídica: tanto a formalização do crédito rural quanto a constituição de garantia deverão ocorrer independentemente “da exibição de comprovante de cumprimento de obrigações fiscais, previdenciárias, trabalhistas ou ambientais”, quando o produtor rural (i) for de porte pequeno ou médio e (ii) apresente declaração de estar em plena regularidade quanto às obrigações mencionadas.

Ou seja, exige-se que as instituições financeiras forneçam crédito e constituam garantias com base tão somente em declarações de regularidade por parte dos produtores rurais de porte pequeno ou médio, sujeitando-as a risco de responsabilização por infrações de natureza previdenciária, trabalhista ou ambiental. Os produtores de pequeno ou médio porte, aliás, contam com outros benefícios, a
saber: (i) a suspensão da inscrição de seu nome em cadastros de proteção ao crédito, enquanto pendente ação judicial que discuta o débito originador da inscrição; (ii) a inversão do ônus da prova quando verossímil a alegação; e (iii) o efeito suspensivo automático aos embargos à execução.

Neste ponto, nota-se que a própria categorização do produtor rural como pequeno, médio ou grande é problemática, haja vista que utiliza como critério a receita bruta anual auferida pelo produtor:

  • se inferior a R$ 500 mil, será de pequeno porte;
  • se permanecer entre R$ 500 mil e R$ 2,4 milhões, será de médio porte;
  • se igual ou superior a R$ 2,4 milhões, será de grande porte.

O critério utilizado nos parece artificial, não só porque inexiste justificativa razoável para a adoção dos valores acima, mas também porque acaba por gerar tratamento semelhante a situações distintas entre si, como também está desconectado dos conceitos atualmente admitidos na formação das políticas agrícolas, bem como dos elementos de organização que levam à empresarialidade.

E é justamente aí que reside o grande equívoco do PL 4588. Ao buscar a proteção dos produtores rurais, o que o pretenso novo diploma legal faz é criar um sistema maniqueísta, geral e genérico, que relativiza a participação do produtor com equidade e transparência das citadas cadeias de produção em um contexto de mercado com as tradings, instituições financeiras e demais agentes econômicos.

Embora não revele expressamente, o PL 4588 pretende criar um verdadeiro “Código de Defesa do Consumidor” exclusivo para produtores rurais, em subversão da lógica do ordenamento, consagrada pela jurisprudência, no que tange à aplicação da teoria finalista. Neste ponto, uma vez verificada a relação de insumo-produto [3] no negócio jurídico entabulado pelo produtor rural, o mesmo não se enquadra no conceito de consumidor, devendo ser afastada a lógica consumerista e, consequentemente, aplicada a lógica comercial e civil.

Ao estabelecer restrições à liberdade contratual das partes, criar uma hipossuficiência ampla e irrestrita dos produtores, em conflito com previsões legais e entendimentos jurisprudenciais, o PL 4588, no lugar de proteger os produtores rurais, poderá impor-lhes verdadeiro retrocesso ao seu maior desenvolvimento, provocando a intensificação de um cenário de insegurança jurídica e, consequentemente, de desincentivo aos agentes fomentadores para comercialização antecipada e financiamento da produção rural.

Resta ao setor o desafio de avançar ainda mais na integração dos agentes econômicos, a partir do fortalecimento da previsibilidade dos comportamentos das partes, em busca de reduzir custos de transação e assegurar maiores eficiência e segurança jurídica à cadeia de relações do agronegócio. É legítimo que as partes, dentro dos parâmetros cooperativos estabelecidos, busquem proteger seus próprios
interesses. O que não se pode permitir é a desconsideração dos objetivos contratuais nessa persecução de interesses. Probidade na condução e na execução das relações contratuais implica atuar no sentido de seu fim econômico, na base objetiva do negócio jurídico.

 

Artigo dos advogados José Afonso Leirião Filho, Renato Buranello e Carlos Galuban Neto publicado pelo JOTA em 1 de maio de 2022, disponível neste link https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/agronegocio-e-o-pl-4588-21-desintegracao-das-cadeias-agroindustriais-01052022