VALOR ECONÔMICO – Decreto cripto: as regras que o BC precisará explicar para as empresas do setor

VALOR ECONÔMICO – Decreto cripto: as regras que o BC precisará explicar para as empresas do setor

Banco Central expedirá as autorizações para que companhias trabalhem com criptomoedas no Brasil

Por Ricardo Bomfim, Valor — São Paulo

Agora que o decreto que regulamenta o marco dos criptoativos foi publicado, as empresas do setor aguardam pelas definições do Banco Central sobre quais serão os requisitos para operar no mercado brasileiro no futuro. Entre os temas que a autoridade monetária precisa endereçar estão o tipo de licença que uma companhia precisa tirar para trabalhar com criptomoedas e como obtê-la. Além disso, é necessário um detalhamento das medidas de prevenção à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo que cada instituição deverá tomar.

Segundo Karen Duque, head de políticas públicas da Bitso, é nesta etapa que começa o processo mais denso do ponto de vista regulatório: a abertura de consultas públicas do BC. “O primeiro enfoque será na estrutura de licenças. Vamos olhar para como funcionará o processo de autorização para que as empresas possam operar no Brasil”, afirma. Na opinião de Karen, uma das preocupações do setor é o prazo para se adequar às novas normas, uma vez que que o período de vacatio legis (o prazo que uma lei tem para entrar em vigor) chega ao fim no dia 20 deste mês.

Erik Oioli, sócio diretor e fundador do VBSO Advogados, acredita que o BC não fugirá dos procedimentos de obtenção de autorização que já existem atualmente para outros setores e atividades. Na opinião dele, devem ser cobrados pelo regulador das companhias de criptoativos a apresentação de um plano de negócios, demonstração de capacidade econômica, financeira e de recursos tecnológicos para exercer aquela atividade, prova de que os sócios têm reputação ilibada e possivelmente uma exigência de capital mínimo com demonstração da origem dos recursos deste capital.

Sobre o prazo, Oioli projeta que ainda demore pelo menos mais 12 meses para que as empresas sejam obrigadas a se adequar às normas infralegais do BC. Um dos motivos para isso é que o processo de consultas públicas ao mercado (que muito provavelmente o BC abrirá antes de soltar seu conjunto normativo) normalmente dura alguns meses, nos quais o regulador colhe sugestões do setor privado para saber como regular sem frear o avanço do setor. “Depende da extensão das normas, mas espero um prazo de seis meses. Aí, a partir disso, seria concedido um prazo de mais seis meses para as empresas se adequarem ao novo conjunto regulatório.”

Renata Cardoso, sócia do escritório Lefosse, também entende que as regras do BC precisam conceder aos prestadores de serviços de ativos digitais pelo menos seis meses de carência para que se adaptem às novas exigências. Renata ressalta que no processo de obtenção de licença no setor pode haver exigência de evidenciar os controladores finais das entidades que operam com cripto. “Isso significa que algumas das corretoras organizadas sob a forma de DAO [Organização Autônoma Descentralizada, na sigla em inglês] podem ter que repensar sua estrutura societária caso queiram entrar no mercado brasileiro, uma vez que normalmente os beneficiários dessas organizações não são necessariamente identificados.”

Marcelo de Castro Cunha Filho, advogado especialista em criptoativos do Machado Meyer, diz que o BC já deve ter preparado um corpo de regras específicas sobre processo de autorização das prestadoras de serviços de ativos virtuais e requisitos de capital regulatório e social mínimos. “Eles já devem ter uma ideia de requerimentos específicos para autorização, como presença local no Brasil e CNPJ. Também devem endereçar questões específicas sobre lavagem de dinheiro e reporte de operações suspeitas”, avalia.

Em relação à lavagem de dinheiro e combate ao financiamento do terrorismo, Erik Oioli aponta que o BC deve exigir que as empresas tenham uma área de compliance e façam um processo conheça seu cliente (KYC, na sigla em inglês) na hora de cadastrar usuários em suas plataformas. Oioli diz que também será necessário seguir regras de proteção ao consumidor similares às praticadas pelos bancos.

“Tem a proteção do consumidor bancário, que vai além do CDC [Código de Defesa do Consumidor]. O BC deve se inspirar nessa norma, pedindo transparência sobre os serviços prestados e as taxas cobradas pelos prestadores de serviços cripto. Fora isso, ele deve também coibir a venda casada de produtos”, detalha.

A advogada Mirela Andreola, sócia do Machado Associados, aponta que para não desincentivar o desenvolvimento do setor a regulamentação do BC não pode ser “demasiadamente difícil de ser cumprida”. Ela cita como exemplo de normas muito rígidas as adotadas pelo estado de Nova York, nos Estados Unidos. Naquela jurisdição, há um formulário que chegava originalmente a ter mais de 30 páginas a ser preenchido e uma série de obrigações de informações, dentre elas a de divulgar a base global de clientes, apresentar demonstrações financeiras no prazo de 45 dias contados do encerramento do trimestre e de guardar as informações sobre transações por dez anos. “Até hoje, poucas licenças foram expedidas lá. Talvez a possível colaboração através de audiência pública possa afastar esse risco”, entende.

Do lado controverso, um dos principais pedidos de várias empresas do segmento, principalmente as corretoras de criptomoedas nacionais, é a exigência de segregação patrimonial para as plataformas que oferecem compra e venda de criptoativos. O assunto chegou a ser incluído na lei do marco regulatório de criptoativos no Senado, mas foi derrubado pela Câmara dos Deputados antes da aprovação do projeto.

A segregação patrimonial é um dispositivo que impediria uma corretora de criptomoedas de incluir no seu balanço os ativos de clientes que estão sob sua custódia, algo que é feito pelos bancos para permitir as operações de crédito. Marcelo Cunha Filho entende que apesar da expectativa de que o BC coloque o tema novamente em discussão, há muita dúvida sobre se a autoridade poderia exigir a segregação patrimonial em nível infralegal. “Muita gente argumenta que esta é uma matéria reservada à lei”, explica.

Hoje, há um projeto de lei de autoria da senadora Soraya Thronicke (União-MS) que defende a exigência da segregação patrimonial para instituições que trabalham com criptoativos, mas ele tem tido tramitação difícil no Congresso. A senadora afirma que a segregação do patrimônio dos clientes evitaria a perda massiva de capital de investidores vista em grandes colapsos do setor nos EUA, como foi o caso da corretora FTX em 2022.

Outro ponto destacado foi a atribuição de competência para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para a regulação de ativos digitais que sejam considerados valores mobiliários. Marcelo Padua Lima e Karina Ribeiro Delarmelina, sócio e advogada da Cascione Advogados, comentam que a autarquia já vem acompanhando de perto o mercado, inclusive com a apresentação de um parecer sobre a interface entre ativos virtuais e o mercado de valores mobiliários e um ofício sobre a tokenização de ativos de renda fixa.

“A parte interessante da discussão infralegal é que ela será alterada o tempo todo. A regulação financeira no Brasil se transforma muitas vezes”, avalia Karen Duque.

 

Notícia publicada originalmente na plataforma do Valor Econômico. Clique aqui para acessar