Valor Econômico – ‘Marco cripto’ entra em vigor com dúvida sobre efeito prático

Valor Econômico – ‘Marco cripto’ entra em vigor com dúvida sobre efeito prático

Lei passa a valer dia 20 de junho, mas há dúvidas sobre registro de estrangeiros e comunicação de operações suspeitas

Sancionada no fim do ano passado, a lei 14.478 que institui o marco dos criptoativos passa a vigorar a partir de 20 de junho mesmo sem o decreto da Presidência da República que deve apontar o supervisor que regulamentará a atividade no país. Como o projeto partiu do Legislativo, cabe ao Executivo definir quem será o responsável por essa tarefa na administração pública.

A lei, que passa a valer automaticamente 180 dias após sua publicação, terá plena eficácia em relação a todas as disposições que não dependam expressamente de regulamentação infralegal. Por exemplo, as alterações legislativas para tipificar fraudes e crimes de pirâmide por meio de ativos virtuais, de forma expressa, no Código Penal.

Segundo Renata Cardoso, sócia do Lefosse Advogados, os prestadores de serviço e demais intermediários deverão observar, entre outros aspectos, as diretrizes gerais desse mercado, como livre iniciativa e livre concorrência, boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos, além de segurança da informação e proteção de dados pessoais, defesa de consumidores e usuários, prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição, em alinhamento com os padrões internacionais.

Por outro lado, alguns dos pontos mais sensíveis da lei ainda dependerão de regulamentação infralegal pelo supervisor, como os critérios de funcionamento e obtenção de licença dos prestadores de serviços de ativos virtuais – as chamadas Vasps -, além de condições para o exercício em cargos de administração dessas empresas, hipóteses que poderão levar ao cancelamento de licença, requerimentos de capital mínimo etc.

“Vigência da lei sem a regulação infralegal pouco traz de novo”

Normalmente, várias dessas regras, antes de editadas, são colocadas em audiência pública para manifestação dos interessados.

A proposta de texto do decreto foi encaminhada à Casa Civil pelo Ministério da Fazenda em março e contou com a colaboração de técnicos do Banco Central (BC) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), prováveis reguladores em suas respectivas áreas de competência. Havia uma expectativa de que o decreto fosse publicado logo em seguida, mas o presidente Lula quis consultar outros integrantes do governo, entre eles, a área de estratégia digital. O ambiente político também teria sido visto como inadequado por conta do debate em torno das indicações dos novos diretores do BC, que ocorreu na semana passada.

Há dúvidas sobre a situação das Vasps estrangeiras sem domicílio no país. A lei diz que terão prazo de seis meses para regularizar a situação, mas isso só diz respeito àquelas que já estão aqui. As que ainda não chegaram teriam de iniciar suas atividade após o registro, sob regras ainda não conhecidas.

“Isso significa que as prestadoras de serviços de ativos virtuais que não estejam em funcionamento no Brasil à época de vigência da lei, uma vez que a lei entre em vigor, não poderão prestar tais serviços até que obtenham uma autorização da entidade reguladora”, disse Renata Cardoso, do Lefosse.

Fabio Braga, sócio do Demarest, afirma que certos dispositivos da lei já poderão ser utilizados para adequação das Vasps em atividade. Para Braga, poderia haver vantagem prática para prestadoras já em atuação, desde logo, com adaptação de suas práticas, procedimentos e políticas aos ditames da nova lei.

Ele afirma que isso tende a ser positivo no âmbito do processo de autorização, assim que a regulamentação for editada. Outra vantagem de ter as atividades iniciadas antes da edição das normas infralegais é que as Vasps em funcionamento poderão contar com um prazo não inferior a seis meses para se submeterem ao processo de autorização, sem suspensão de operações, o que não ocorrerá com aquelas que se estabelecerem após a edição da regulamentação.

“Estando em funcionamento desde já, a prestadora poderá se submeter ao processo de adaptação e autorização sem parar as atividades, sendo que esse processo não deverá ter prazo inferior a seis meses. Enquanto isso, as prestadoras já poderão ir adaptando as suas políticas, procedimentos e manuais operacionais às novas regras”, disse Braga.

Para Erik Oioli, sócio do VBSO Advogados, a regra para estrangeiras ainda fora do país ainda é discutível porque o registro e seu formato dependem do órgão supervisor. “A rigor não muda enquanto não houver a regulamentação, mas estarão sujeitas aos dispositivos penais quando eventuais condutas reputadas como ilícitas forem praticadas no país ou envolverem cidadãos brasileiros”, disse.

Isac Costa, sócio do Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper, diz que a vigência da lei sem a regulação infralegal pouco traz de novo ao que o Judiciário já podia fazer.

“O que é novo não pode ser aplicado porque não foi instituído o regime de autorização. Não dá para exigir que ninguém comunique transações suspeitas”, disse, referindo-se ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Costa também considera “temerário” permitir acusações com base no novo artigo da lei que rege o estelionato por ativos virtuais inserido no Código Penal.

“Falta a efetiva implementação desse dever, uma vez que a lei prevê regulamentação do funcionamento e a supervisão da prestadora de serviços de ativos virtuais, ainda pendente, o que abarcará formas e procedimentos do ‘report’, incluindo o próprio acesso ao Siscoaf, sistema voltado para o recebimento de possíveis operações suspeitas”, disse Renata Cardoso, do Lefosse.

“Mesmo sem a edição do decreto, a lei trouxe importantes direcionamentos e mostrou o nível de seriedade com que o mercado cripto está sendo tratado por aqui, como por exemplo, a exigência que Vasps obtenham autorização prévia para funcionar no país e adotem controles de prevenção à lavagem de dinheiro”, disse Nicole Dyskant, do Dyskant Advogados.

 

Reportagem publicada originalmente no site do Valor Econômico. Clique aqui para ler.