Valor Econômico – Quebra da FTX chama atenção para ‘ética de negócio’ do setor cripto

Valor Econômico – Quebra da FTX chama atenção para ‘ética de negócio’ do setor cripto

Vácuo regulatório, conflitos de interesse e baixa formalização se tornaram terreno fértil para crise

A rápida implosão da FTX, que já foi a segunda maior corretora de criptoativos domundo, chamou a atenção para a ética de negócios do universo dos criptoativos, que difere em muitos aspectos do que ocorre no ambiente corporativo e nas finanças tradicionais. O segmento já foi descrito como um “velho oeste”, de pirâmides, ataques de hackers, em que os CEOs das startups criptonativas duelam no Twitter e os desenvolvedores de software fazem reuniões transmitidas ao vivo pelo YouTube para deliberar sobre o futuro das blockchains.

Visto normalmente de bermuda e camiseta, com cabelos desarrumados, o fundador da FTX, Sam Bankman-Fried, de 30 anos, vegano convicto, que prometera deixar todo seu dinheiro para filantropia, não se parece com o típico criminoso de colarinho branco, como observou o promotor Damian Williams, que cuida do caso. Se for condenado por todos os oito crimes a que responde, poderá pegar até 115 anos de prisão.

Mesmo bilionário, morava em uma espécie de república com outros nove colegas nas Bahamas. No caso, a república ficava numa cobertura de frente para o mar do Caribe, em Nassau, e os colegas faziam parte de uma comunidade que seria adepta do poliamor, o que motivou comentários nas redes sociais.

A trajetória do empresário foi meteórica, como ocorreu com a maioria das lideranças e empresas do setor cripto, que ganharam impulso nos anos de pandemia e de dinheiro fácil dos fundos de venture capital, sem o devido acompanhamento do back-office, controles e governança.

Em pouco mais de três anos, pequenas startups de criptoativos como a FTX se tornaram conglomerados com atuação em diferentes verticais de negócios -negociação, gestão de recursos, custódia, empréstimos, cada uma prestando serviço para outra. O modelo é criticado pelo conflito de interesse e governança deficiente no tratamento com partes relacionadas.

Filho de dois professores da Escola de Direito da Universidade Yale, Bankman-Fried participava de olimpíadas de matemática e estudou física no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Começou a carreira em 2013 como estagiário na gestora Jane Street, onde programava algoritmos de investimento em ETFs (fundos de índices) internacionais. Em 2017, fundou a Alameda Research para fazer o mesmo trabalho, só que com bitcoin e moedas digitais.

Com o sucesso das apostas da Alameda, que surfou na alta das criptomoedas e se tornou um “market maker” (um formador de mercado), ganhou musculatura para abrir a sua própria exchange, construindo em poucos anos um império de mais de cem empresas, que chegou a valer mais de US$ 32 bilhões e contar com 130 subsidárias e startups investidas.

A Alameda dava limite de alavancagem de até 20 vezes o capital do cliente e de sua tesouraria, permitindo ganhos estratosféricos quando bitcoin e demais moedas subiam. No inverno cripto, o cenário se inverteu e os prejuízos vieram com a mesma intensidade. Os clientes com prejuízos eram sumariamente liquidados pelos “smart contracts” (contratos inteligentes), mas isso não acontecia com as perdas da Alameda, que eram cobertas com recursos dos clientes da FTX, segundo a SEC (comissão de valores mobiliários dos EUA).

Na visão do novo CEO da FTX, John Ray, especialista em recuperação de ativos, a maioria dos problemas da empresa se deve à má gestão e a profissionais despreparados que centralizavam decisões de forma equivocada. Contas eram aprovadas com emojis e a contabilidade usava uma versão do software QuickBooks, considerado amigável para startups, mas inadequado para empresas que lidam com bilhões de dólares.

“Existe no universo cripto uma gigantesca assimetria de informações. Isso é a chave para responder a várias perguntas sobre a FTX e a outros casos de fraudes, hackers e pirâmides que aconteceram”, disse Helena Margarido, especialista de ativos digitais da Monett.

Para Erik Oioli, fundador do VBSO Advogados, a história da FTX evidenciou o quão importante é a regulamentação do mercado de criptomoedas, pois quanto mais supervisão em cima de uma empresa mais importante se torna para ela se formalizar e organizar sua estrutura. “Você está lidando com patrimônio de pessoas, e é muito fácil, diante da ausência de regras, manipular o mercado.”

Segundo Oioli, a maior exigência de transparência no mercado de capitais blindou de certa forma a Coinbase, hoje a maior corretora de criptomoedas dos EUA, de sofrer mais com a desconfiança dos investidores após a quebra da FTX. “A Coinbase tem um nível de transparência maior do que a de uma exchange fechada. Ela precisa publicar balanços, fatos relevantes etc. Não elimina a possibilidade de fraudes, mas as regras e a formalização tornam mais difícil ter desvios de conduta”, avalia.

O próprio Sam Bankman-Fried, paradoxalmente, era visto como o mocinho entre os foras-da-lei da criptoeconomia, pois defendia a regulamentação. O empresário rapidamente ganhou a confiança de parlamentares de Washington – foi o segundo maior doador dos democratas nas eleições deste ano -, reguladores do mercado de capitais e investidores de venture capital do porte de Sequoia Capital, BlackRock, Softbank, entre outros, que agora reduziram a zero suas posições na empresa.

Depois da quebra da FTX, o lobby pró-regulação encampado por Bankman-Fried abalou as convicções das autoridades de Washington, que até então viam nas exchanges centralizadas, que seguem o modelo de intermediários de Wall Street, uma forma mais conhecida e segura para colocar ordem no setor. Com a crise de confiança nessas exchanges, porém, investidores passaram a assumir a própria custódia e a levar seus tokens para aplicações descentralizadas, como pregava os primeiros anos da criptoeconomia.

Para Helena Margarido, da Monett, as corretoras centralizadas passaram a operar como bancos, mas sem cumprir as exigências de requerimento de capital e de tratamento de recursos de terceiros que o setor aperfeiçoa durante décadas e sucessivas crises. Ela acredita que o investidor de criptoativos oriundo das finanças tradicionais não sabe dar o devido valor ao serviço de custódia, porque sempre recebeu isso de forma gratuita pelos bancos e corretoras tradicionais.

“Infelizmente, aprendeu isso da pior forma possível, perdendo os depósitos. A boa notícia é que, diferentemente das finanças tradicionais, os criptoativos permitem a autocustódia. Nas finanças tradicionais, a única forma é trazer o dinheiro e colocar debaixo do colchão. Só que dá trabalho e muitos não querem assumir essa responsabilidade”, disse.

Reportagem publicada pelo Valor Econômico em 16 de dezembro de 2022, disponível neste link: https://valor.globo.com/financas/criptomoedas/noticia/2022/12/16/quebra-da-ftx-chama-atencao-para-etica-de-negocio-do-setor-cripto.ghtml