Valor Econômico- Judiciário condena produtores rurais a indenizar empresas de trading pela não entrega de grãos

Valor Econômico- Judiciário condena produtores rurais a indenizar empresas de trading pela não entrega de grãos

Primeira e segunda instâncias acatam pedidos de indenização por não entrega de grãos

Produtores rurais vêm sendo condenados a pagar indenização por perdas e danos a tradings que atuam no mercado de commodities. O motivo está em uma cláusula contratual – chamada “washout” – que, com a alta dos preços dos grãos, passou a ser acionada com mais frequência pelas empresas.

Contratos de compra futura da safra geralmente preveem essa cláusula. Estabelecem que o produtor será responsabilizado pelos prejuízos se não entregar o produto na data combinada e a empresa precisar recomprar por preço mais alto no mercado. É uma forma de inibir que, no momento da colheita, o produtor seja seduzido por ofertas mais altas que a fechada na época do contrato – com base na cotação vigente – e redirecione a entrega dos grãos.

Até o ano passado, no entanto, antes do recorde de aumento nos preços das commodities agrícolas, essa cláusula era pouco acionada pelas empresas porque as multas que também estão previstas nos contratos costumavam ser suficientes para cobrir os prejuízos.

“Só que as commodities dobraram de preço e a multa, mesmo alta, não cobre mais a diferença entre o que foi contratado e o praticado atualmente no mercado”, diz o advogado Fernando Bilotti Ferreira, do escritório Santos Neto.

Ele se refere a contratos que foram fechados em 2020 e tinham entrega prevista para 2021. Segundo o advogado, as multas costumam variar entre 10% e 30% do valor contratado. Já a cláusula “washout” cobre todo o prejuízo – que pode ficar, inclusive, acima do valor total do contrato.

O aumento dos preços das commodities foi influenciado, no ano passado, pela forte demanda internacional e alta da taxa de câmbio. Subiu 45,23% em relação a 2020, segundo o Índice de Commodities Brasil (IC-Br), divulgado pelo Banco Central. “Começou com a soja, depois milho, algodão e café. Em setembro de 2020, a saca de café estava sendo comercializada por cerca de R$ 600, atualmente está em quase R$ 1,5 mil”, afirma Ferreira.

Uma empresa cliente do advogado, que obteve o direito à indenização na Justiça, comprou 1,2 mil toneladas de milho em grãos que não foram entregues na data combinada. O valor pactuado era de R$ 612 mil e a multa estabelecida para caso de descumprimento estava fixada em R$ 134 mil.

Os prejuízos por ter que recomprar a mesma quantidade de milho no mercado, a preço atual, no entanto, somaram R$ 1,088 milhão. A multa, nesse caso, cobriria pouco mais de 10%.

A decisão que garantiu o pagamento da multa e a indenização, de forma cumulada, foi proferida pelo desembargador Carlos Dias Mota, da 26ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). O magistrado levou em conta as condições previstas no contrato e o fato de as partes – produtor e empresa – terem ciência quanto ao risco de oscilação do preço de mercado do grão.

“É razoável considerar que as perdas e danos não correspondem apenas ao preço do produto ajustado quando da celebração dos contratos, mas sim aos prejuízos decorrentes da necessidade de adquirir junto a terceiro o volume de milho não entregue”, diz na decisão (processo nº 1042107-07.2021.8.26.0002).

A maioria dos pedidos que vêm sendo feitos à Justiça tem esse formato: inclui a aplicação da multa e o pagamento de indenização por perdas e danos – que corresponde à diferença entre o preço contratado e o preço praticado no mercado no momento em que deveria ter ocorrido a entrega do produto.

Os produtores, por outro lado, vêm alegando desequilíbrio contratual. Consideram a cumulação de multa e indenização como abusiva e dizem que os contratos, nesse formato, beneficiam somente os credores.

Defendem, além disso, que a cláusula “washout” não poderia ser aplicada de forma automática. As empresas, no entendimento dos produtores, deveriam demonstrar, documentalmente, que o contrato rompido estava vinculado a um negócio posterior também pactuado com base no preço antigo.

Mas não têm conseguido convencer juízes e desembargadores. A jurisprudência vem se consolidando a favor das empresas. Há decisões inclusive de turma, no TJSP, validando essas cobranças. A 28ª Câmara de Direito Privado, por exemplo, decidiu a favor da empresa ao analisar um contrato de compra de 300 toneladas de soja que não foram entregues pelo produtor (processo nº 2040144-16.2022.8.26.0000).

O relator do caso, desembargador Cesar Luiz de Almeida, citou o artigo 809 do Código de Processo Civil (CPC) ao determinar o pagamento da indenização. Ele disse que o dispositivo “é claro”, ao estabelecer “o direito de receber o valor da coisa, quando essa se deteriorar, não for entregue, não for encontrada ou não for reclamada do poder de terceiro adquirente”. A decisão foi unânime. Um outro caso de descumprimento, envolvendo a compra de 480 toneladas de soja, foi julgado pela 31ª Câmara de Direito Privado e os desembargadores também entenderam pela aplicação do artigo 809 do CPC (processo nº 2141539-85.2021.8.26.0000).

“A lei permite que se cobre multa e indenização em qualquer contrato. Imagine que você alugou uma casa. O inquilino tem a obrigação de preservar esse imóvel. Se romper o contrato e entregar completamente destruído, ele terá que arcar com a multa e todo o prejuízo que você terá com o conserto”, diz o advogado Henrique Furquim Paiva, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes. Advogados dizem que essas decisões do TJSP dão segurança aos contratos de compra futura – que são importantes para toda a cadeia. A trading não é o destinatário final do produto. Ela compra e vende, geralmente para o mercado externo.

“A comercialização é importante para o financiamento do produtor e para a exportação”, enfatiza José Afonso Leirião Filho, sócio do VBSO Advogados.

Ele afirma que o produtor tem a obrigação de entregar o produto e que, quando isso não acontece, a trading recorre à Justiça, primeiramente, para buscar os grãos. “Só quando não encontra é que entra o ‘washout’ e muda o rito processual da ação para cobrar os valores. Faz sentido o Judiciário validar essa cláusula. A ideia é justamente a de reequilibrar a cadeia”, frisa.

Reportagem publicada pelo Valor Econômico em 12 de julho de 2022.