CONJUR – O STJ, o JCP retroativo e a jurisprudência

CONJUR – O STJ, o JCP retroativo e a jurisprudência

Antes de dizer do que trata este artigo, válido esclarecer do que ele não trata: a possibilidade ou não de deduzir a despesa com pagamento de juros sobre o capital próprio (JCP) com base no resultado apurado em períodos anteriores. Ressalvada, desde já, a opinião deste autor acerca da viabilidade da dedutibilidade, este artigo não se propõe a esse debate, mas sim acerca da conduta do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, com base em um acórdão sobre o tema, julgado em 2009, passou a aplicar de maneira reiterada, em julgamentos monocráticos, o entendimento de que seria possível o pagamento do chamado JCP retroativo.

Parece claro que um único julgamento colegiado não possa ser considerado como jurisprudência consolidada e, por isso, talvez equivocada a técnica de julgamento monocrático. O assunto ganha relevância em razão de uma relativamente recente decisão do ministro Herman Benjamim, que reconsiderou sua decisão monocrática anterior e determinou que a questão fosse levada a julgamento pela Turma (REsp 1951674/SP [1]). A reconsideração ocorreu após a apresentação de agravo interno pela União, fundamentado no fato de inexistir jurisprudência consolidada a respeito do tema que justificasse julgamento monocrático.

O ministro, ao perceber que sua decisão monocrática, assim como diversas outras proferidas no STJ desde 2009, era fundamentada em apenas um julgamento colegiado, acolheu o recurso da União e tornou sem efeitos sua decisão anterior. Com isso, o processo agora aguarda oportunidade para um julgamento colegiado, ocasião em que o mérito acerca da legalidade ou não da dedução com o pagamento de JCP retroativo será enfrentada. Até então, nenhum problema. Correta, a meu ver, a decisão do ministro. Afinal, não é possível dizer a existência de jurisprudência pacificada quando se está diante de apenas um acórdão.

O problema não está na realização de um novo julgamento, mas sim no contexto em que o julgamento irá ocorrer, sem que, necessariamente, sejam apreciados todos os argumentos levados pelos contribuintes ao longo dos anos para essa questão. Ao decidir monocraticamente os casos anteriores, os ministros do STJ endossaram o posicionamento do REsp 1.086.752/PR, de 2009, transmitindo para empresas e advogados a mensagem de que seriam ilegais os atos normativos da Receita Federal do Brasil em que defendida a impossibilidade da dedução do JCP retroativo. Agora a questão será reavaliada, sendo esperado debate acerca da violação ao regime de competência no pagamento do JCP retroativo.

Em tese, nenhum problema. Afinal, pela ótica contábil, a deliberação pelo pagamento do JCP é o ato que tem o condão de, segundo o regime de competência, ensejar a constituição de uma obrigação de pagamento. Se o lucro foi apurado, mas não houve deliberação sobre o pagamento de JCP no exercício, não haveria que se considerar a dedutibilidade como exclusiva ao período de apuração do lucro. Se não houve deliberação de pagamento, não há lançamento contábil. Se a lei autoriza o pagamento com base em resultados passados, não haveria, em tese, impedimento para a sua dedução no período do pagamento.

Contudo, o que se percebe é a propagação de argumentos equivocados acerca do tema. Ao invés de um debate aprofundado sobre o que implica o regime de competência, bem como em que momento há a obrigação de pagamento do JCP, parece que o debate se forma em torno da inexistência de obrigatoriedade de observância desse regime. É o que se percebe no REsp 1977667/CE, no qual o mesmo ministro Herman Benjamim determinou o retorno dos autos ao Tribunal de origem para apreciação da tese do contribuinte de que “a lei não impõe a adoção do regime de competência”.

Ainda que a argumentação do contribuinte não seja exatamente essa, a forma como a determinação é redigida pode levar a uma conclusão apressada — e equivocada — de que um contribuinte sujeito à sistemática do Lucro Real queira defender ser facultativa a observância do regime de competência. Algumas conclusões precipitadas podem originar um precedente ruim e esse precedente pode ser reiteradamente aplicado, sem que reinvestigados seus fundamentos. A discussão não deve olhar para o regime de competência apenas no tocante à apuração do lucro, mas também considerar que a dedutibilidade de uma despesa deve ser promovida, segundo a competência, quando incorrida a despesa.

Como é possível perceber, o risco que motivou este artigo não é a possibilidade de apreciação colegiada do tema, agora, mais de dez anos depois do julgamento do REsp 1.086.752/PR, de 2009. O alerta que aqui se propõe é para o risco de formação de um precedente que não analisou o tema de maneira adequada. Apesar do elevado nível técnico dos julgamentos do STJ, não podemos esquecer de julgamentos recentes que surpreenderam a comunidade jurídica, como no caso em que foi julgada a impossibilidade de utilização de embargos à execução fiscal para debater a legalidade da decisão que não homologa pedido de compensação.

Em um país em que a mudança repentina de jurisprudência não mais surpreende e que o famoso o voto banana boat já virou caso obrigatório nas salas de aula, necessário atentar para potencial catástrofe antes que ela aconteça. Caso o debate do STJ fosse sempre aprofundado, como deveria ser, os advogados não teriam agora que elaborar estratagemas processuais para garantir o direito de ampla defesa e contraditório quando uma compensação não é homologada.

O Brasil já caminha há bastante tempo na direção de institutos processuais que viabilizem a aplicação de jurisprudência consolidada. Porém, alguns erros parecem se repetir. A formação de precedentes que fundamentem decisões monocráticas é positiva para o ordenamento jurídico, mas é preciso cautela. Não se pode admitir que um novo julgamento, caso desfavorável, implique mudança completa da posição do STJ, que agora passaria a aplicar o entendimento de que não seria possível a dedutibilidade.

Como conclusão, vale destacar que duas coisas que são certas. A primeira é que um único acórdão não pode significar jurisprudência consolidada. A segunda é que, para pacificação de jurisprudência e formação de um precedente consistente, não é possível admitir que os argumentos existentes em um processo sejam considerados suficientes. Pelo bem de todos, fica o apelo para que o futuro julgamento do STJ tenha apreço à técnica contábil, com avaliação não apenas das disposições legais e as restrições infralegais, mas também com estudo aprofundado sobre que implica o regime de competência.

[1] AgInt no REsp nº 1.951.674, ministro Herman Benjamin, DJe de 10/12/2021

 

Reportagem publicada pelo ConJur em 13 de agosto de 2022, disponível neste link: https://www.conjur.com.br/2022-ago-13/vinicius-caccavali-jcp-retroativo-jurisprudencia