JOTA – Desapropriação de imóvel rural produtivo: a falta de regulamentação ordinária

JOTA – Desapropriação de imóvel rural produtivo: a falta de regulamentação ordinária

Tese do STF pode levar à percepção de caráter subjetivista do efetivo cumprimento da função social da propriedade

Por Renato Buranello – Presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA) e sócio do VBSO Advogados
Confira, aqui, o texto original

Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, validou a tese de desapropriação de terras produtivas. A análise, realizada em plenário virtual, seguiu o voto do relator, ministro Edson Fachin, que negou o pedido da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), na ADI 3865 quanto à inconstitucionalidade de trechos da Lei de Reforma Agrária (Lei 8.269/2023). Para a CNA, a lei em questão confunde conceitos de utilização da terra e eficiência de sua exploração, de forma a dar tratamento igualitário às propriedades produtivas e às improdutivas.

O relator sustentou a impossibilidade de se dar prosseguimento à arguição da CNA, uma vez que a própria Constituição Federal prevê os parâmetros mínimos do cumprimento da função social da propriedade, em seu art. 186: atendimento simultâneo dos requisitos de aproveitamento racional e adequado, uso adequado dos recursos naturais, cumprimento da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

Ainda, o ministro Fachin alegou que o direito de propriedade fica condicionado a seu uso socialmente adequado, sendo exigido constitucionalmente o cumprimento da função social da propriedade produtiva como um requisito simultâneo à sua inexpropriabilidade. A consequência do descumprimento da função social seria a desapropriação do imóvel, nos termos do art. 184 da CF, que prevê uma indenização ao proprietário pela desapropriação.

Essa tese da desapropriação de propriedades produtivas por descumprimento da função social não é nova e foi sendo “social e juridicamente aceita”, com sentido de desconstruir a garantia do art. 185 da Constituição, que preservaria as pequenas propriedades e as propriedades produtivas, com imunidade à desapropriação.

Anteriormente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já analisou um caso concreto sobre o tema de desapropriação de imóvel rural devido ao descumprimento de função ambiental. O caso em comento apontava à utilização de Área de Preservação Permanente, para exploração produtiva, de forma a haver clara deturpação dos ditames ambientais reconhecidos e regulados no país.

Cabe dizer, são claros os objetivos da reforma agrária de melhor distribuição de terras, com condão de cumprimento da justiça social. Alinha-se a isso o pensamento de que a propriedade pode e deve ser utilizada de maneira integral e tecnológica, de forma a garantir que menores espaços de terra sejam capazes de cumprir mais e melhor as necessidades coletivas. Contudo, o posicionamento adotado pelo STF, ainda que sustentado numa possível interpretação constitucional, pode incitar inúmeras dúvidas aos agentes da atividade de produção rural.

A tese interpretativa pode levar à percepção de caráter subjetivista do efetivo cumprimento da função social da propriedade. A ausência de critérios objetivos claros leva a distorções quanto à real intenção do legislador constituinte. Assim, está disposto o comando ao legislador ordinário no próprio parágrafo único do art. 185 da Constituição Federal: “a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”.

A nós, o cumprimento da função social depende de uma ponderação do binômio necessidade/possibilidade, ou seja, retirar daquele que não produz, com a devida indenização. As limitações impostas ou as novas conformações emprestadas ao direito de propriedade deverão observar, especialmente, o princípio da proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais.[1]

Ainda, acerca dos recursos naturais, caso não seja comprovada a violação à disposições da legislação ambiental e nexo causal, com o efetivo prejuízo ao meio ambiente, nos parece que qualquer interpretação pelo uso inadequado seria meramente subjetiva. É, sem dúvida, mais um fator de risco e insegurança jurídica sobre a propriedade rural imobiliária, especialmente porque tudo cabe como descumprimento da função social, do direito ambiental e ao direito do trabalho.

Realmente, vivemos tempos sombrios para a garantia da propriedade privada. A subjetividade, que enseja interpretações variadas que poderiam justificar a desapropriação, é perigosa. Sem critérios precisos para ponderar fatos e caracterizar a função social, abre-se a porta. Cabe reforçar que “a locução social traduz o comportamento regulador do proprietário, exigindo que ele atue numa dimensão na qual se realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado do bem que lhe assegure as faculdades de uso, gozo e disposição. Vale dizer, a propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém detendo finalidade econômica adequada às atividades urbanas e rurais básicas, no intuito de circular riquezas e gerar empregos”.[2]

O desenvolvimento da atividade agrícola vem se destacando nos últimos anos no Brasil, o que contribui para a melhor utilização da terra. A modernização das técnicas de produção, o aumento da eficiência e o interesse na segurança alimentar, levaram os proprietários e a sociedade a valorizar as atividades rurais. Diminuindo o número de propriedades improdutivas, incentivando a produção da agricultura familiar (Pronaf), e fazendo mudanças na legislação ambiental e trabalhista. Hoje, a produção rural tem lugar de destaque nacional e, intencionalmente, isso contribui significativamente com a função social da propriedade.

[1] TOLEDO, Gastão Alves. O Direito Constitucional Econômico e sua EficáciaRio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 188.

[2] ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 314.