JOTA – STF: incidência de ISS em contratos de compartilhamento de infraestrutura

JOTA – STF: incidência de ISS em contratos de compartilhamento de infraestrutura

Análise das consequências da conclusão do Supremo no julgamento da ADI nº 3.142

O objetivo deste artigo é analisar as consequências da conclusão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.142, em 5 de agosto de 2020, sobre a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) em contratos de compartilhamento de infraestrutura.

Na ocasião, o Tribunal definiu que é constitucional a incidência desse imposto nas atividades de “locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza” (subitem 3.04 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003), desde que atreladas a uma obrigação de fazer e que não seja possível dissocia-las, tanto pela perspectiva do objeto do contrato quanto da sua remuneração.

Isso significa que, para o STF, é legítima a tributação sobre contratos de compartilhamento de infraestrutura em determinadas hipóteses. O ponto central dessa análise passa pela avaliação quanto à existência de obrigação de fazer e à possibilidade de segregação entre as obrigações contratuais e sua remuneração. Nesse cenário, vislumbramos as seguintes hipóteses:

  • Contrato tem apenas obrigações de cessão do direito de uso: não há incidência do ISS;
  • Contrato tem obrigações de cessão do direito de uso e de fazer, mas é possível separá-las quanto ao objeto e quanto à remuneração: há incidência de ISS apenas sobre o valor da remuneração relativa à obrigação de fazer;
  • Contrato tem obrigações de cessão do direito de uso e de fazer, não sendo possível separá-las quanto ao objeto e quanto à remuneração (segregação deve ser possível para ambas as perspectivas): há incidência de ISS sobre o valor total da remuneração prevista em contrato.

Avaliando essa segregação, é possível perceber que as premissas do STF estão claras para avaliação acerca da incidência ou não do ISS sobre as atividades previstas no subitem 3.04 da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003. Entretanto, a análise do acórdão em questão mostra que o cenário é mais complexo, justamente em razão da dificuldade de identificação, nesse tipo de contrato, de obrigações de fazer. Na definição do STF, essas situações podem ser definidas como de obrigações “mistas ou complexas”, assim entendidas aquelas em que estão atreladas obrigações de dar e de fazer.

É possível perceber, portanto, que esse julgado indica a existência de obrigações que não se enquadram perfeitamente na clássica divisão entre “de fazer” ou “de dar”, justamente porque contêm elementos de ambas, razão pela qual a questão não foi resolvida pela simples aplicação da Súmula Vinculante nº 31, que fixou a impossibilidade de exigência de ISS sobre a locação de bens móveis. O racional por detrás dessa Súmula está relacionado com a ideia de que, na locação, cabe ao locador disponibilizar ao locatário um bem por um determinado período, o que se caracterizaria como obrigação de dar e não de fazer. Havendo obrigações complexas e não sendo possível sua segregação no contrato, não seria possível prosseguir com a aplicação da Súmula Vinculante nº 31, tal como afirmado pela Ministra Rosa Weber no seu voto na Rcl nº 14.290.

A tributação pelo ISS, portanto, dependerá da análise das obrigações previstas em contrato, de modo a identificar sua natureza e possibilidade de separação de seu objeto e remuneração. Por exemplo, se um contrato prevê, de maneira atrelada, a locação de postes de energia a empresas de telecomunicação e a disponibilização de mão de obra especializada para instalação e manutenção de equipamentos, sem a devida segregação dessas atividades em seu objeto e na sua remuneração, haverá incidência de ISS sobre o valor total dos pagamentos previstos no contrato.

Diante disso, nas hipóteses em que houver previsão de obrigações de dar e de fazer, deve ser promovida a segregação no objeto, com identificação precisa de cada uma, de modo a ser possível, inclusive, a rescisão parcial, bem como na remuneração, de modo que a autoridade fiscal municipal seja capaz de identificar o que está sendo pago pela obrigação de dar e o que é referente à obrigação de fazer. Caso contrário, não sendo possível a segregação, a decisão do STF acaba por validar a eleição do valor total previsto em contrato como base de cálculo do ISS.

Se essas questões já podem causar dúvidas na interpretação dos contratos, destacamos a seguir o exemplo apresentado pelo Ministro Dias Toffoli, relator do caso em análise, no caso de uma locação de ferrovia. Para o Ministro, se houver locação de forma isolada da estrutura da ferrovia, sem qualquer outra atuação do proprietário que não seja a sua própria disponibilização, não há que se falar em exigência do ISS. Porém, se o contrato de locação da ferrovia previr conjuntamente uma obrigação de fazer, como, por exemplo, a manutenção da ferrovia, e essa previsão não estiver dissociada da obrigação principal (disponibilizar a estrutura), será possível a cobrança do ISS.

Destaca-se, contudo, que, para o Relator, não é toda e qualquer “manutenção” que pode ser considerada obrigação de fazer e, consequentemente, atrair a incidência do ISS, pois a manutenção voltada a apenas manter o bom estado da estrutura, garantindo seu uso, objetiva viabilizar a preservação da relação contratual. Previsão em contrato estabelecendo a obrigação do locador de realizar a manutenção simples da estrutura cedida ou compartilhada não seria, portanto, apta a tornar a relação mista ou complexa, sujeitando-a à exigência do ISS.

Entretanto, o acórdão do STF não especifica qual seria a “manutenção” que, ao ser prevista no contrato de locação/compartilhamento de infraestrutura, poderia resultar na interpretação de existência de obrigação de fazer sujeita ao ISS. Trata-se de uma infelicidade desse acórdão, pois essa omissão deixará margem a interpretações das entidades municipais no sentido de que qualquer atividade relacionada à manutenção da estrutura cedida deveria levar à incidência do ISS.

Entendemos, com a devida vênia a concepções diversas, que a previsão de manutenção da estrutura cedida não pode ser considerada como obrigação de fazer passível de tributação pelo ISS, pois representa apenas a garantia de que o bem cedido será mantido em condições de uso.

No exemplo anterior, sobre cessão de postes de energia elétrica, a manutenção dos postes e atividade de reparo no caso de, por exemplo, ocorrer um acidente que derrube aquele poste, não representa uma obrigação de fazer atrelada à obrigação de dar, mas apenas uma garantia dada pelo cedente de que a estrutura cedida será mantida em condições de uso.

No caso da ferrovia, ilustrado pelo Ministro Dias Toffoli, o cenário parece mais nebuloso, pois haveria a possibilidade de argumentação no sentido de que o destinatário da cessão poderia, por si próprio, realizar a manutenção. Entramos então em outras questões que precisariam ser analisadas no caso concreto, como, por exemplo, a exclusividade de uso da ferrovia; se a cessão foi feita apenas a uma empresa ou a várias e, por isso, seria mais prudente que o próprio cedente seja o único responsável pela manutenção. A realidade das relações comerciais, por consequência, trará desafios de interpretação ao julgamento do STF sobre o tema. A nosso ver, contudo, manutenção da estrutura cedida não deveria implicar tributação pelo ISS.

Em síntese, portanto, o STF decidiu que as atividades descritas no subitem 3.04, por si só, não implicam tributação pelo ISS, sendo possível a exigência desse imposto somente quando verificados, cumulativamente, os seguintes requisitos: (i) relações denominadas “mistas ou complexas”, assim entendidas como aquelas em que estão atreladas obrigações de dar e de fazer, e (ii) situações em que não seja possível a segregação dessas obrigações, tanto no que diz respeito ao seu objeto como no tocante à contraprestação financeira.

Sendo assim, a conclusão do STF foi no sentido de haver parcial procedência da ADI nº 3.142, de modo a dar interpretação conforme a Constituição Federal ao subitem 3.04 da Lista de Serviços anexa à LC nº 116/2003, o que significa admitir a cobrança de ISS apenas em situações específicas.

Não houve, com isso, declaração de inconstitucionalidade do subitem 3.04, mas sim uma delimitação da competência municipal para a exigência do ISS com base nas atividades descritas nesse subitem, bem como o racional a ser aplicado para essa tributação, deixando-se claro que a cobrança do imposto depende da análise específica do contrato. Essa abertura ainda demandará do Poder Judiciário uniformização de jurisprudência sobre o que pode ou não ser considerado como obrigação de fazer tributável pelo ISS, especialmente no que diz respeito a serviços relativos à manutenção da estrutura.

 

Artigo publicado pelo JOTA e de autoria dos advogados SAMIA CHIQUINI DOS SANTOS e VINÍCIUS VICENTIN CACCAVALI disponível neste link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/stf-incidencia-iss-contratos-compartilhamento-infraestrura-24062021