ESTADÃO: Até onde a relativização da coisa julgada pode afetar os contribuintes?

ESTADÃO: Até onde a relativização da coisa julgada pode afetar os contribuintes?

Artigo assinado pelo sócio Paulo Vaz, publicado no site do Estadão

O recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que entendeu pelo cancelamento automático das decisões transitadas em julgado em matéria tributária, tem um impacto direto no debate sobre a inconstitucionalidade da Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL), além de outras disputas tributárias.

O mercado já aguardava a formação de maioria a favor da cessação da eficácia da coisa tributária em razão de precedente do STF em sentido contrário.

Essa cessação automática de efeitos alcançará todos aqueles que tinham decisões a seu favor em contrariedade a decisões judiciais ocorridas em casos de ação direta ou que tenham repercussão geral, não se aplicando aos casos de decisões de controle de constitucionalidade incidental.

O que não se esperava é que não houvesse a modulação dos efeitos dessa decisão. De fato, no tocante à maioria apertada a favor da não modulação (e da consequente aplicação retroativa dos efeitos da decisão) prevaleceu o entendimento de que a modulação (com aplicação dos efeitos da decisão a partir de 2023) seria incompatível com o tratamento isonômico dos contribuintes e a aplicação retroativa visa obrigar aqueles beneficiados com decisões isoladas a recolher os tributos com juros e multa de mora, neutralizando qualquer benefício que possam ter auferido em detrimento do mercado em que atuam.

Ainda que se possa aceitar que o tratamento isonômico dos contribuintes é um dever do Estado para preservar a liberdade econômica e a livre concorrência, já que aqueles contribuintes que agiram de conformidade com a jurisprudência do STF foram prejudicados pelas decisões cujos efeitos se quer fazer cessar, é necessário ponderar que o respeito a coisa julgada é um dos baluartes do ordenamento jurídico e a insegurança jurídica oriunda desse desrespeito pode custar caro ao país, bem como causar enormes prejuízos a terceiros de boa-fé.

Assim, é simplória a visão do Ministro Luís Roberto Barroso de que as empresas não podem alegar surpresa e de que tenham feito uma “aposta”, já que os beneficiados com as decisões isoladas agiram em observância às normas vigentes, inclusive a própria Constituição Federal. Tome-se como exemplo a situação da inconstitucionalidade da CSLL, objeto da ação que motivou a alteração de paradigma.

A CSLL foi criada em 1988 e sua despesa era dedutível da base de cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), como qualquer outro tributo. Posteriormente a legislação foi alterada e a despesa com a CSLL passou a ser indedutível da base de cálculo do imposto de renda para fins de determinação do Lucro Real. Os contribuintes questionaram a cobrança do tributo pois entendiam que a CSLL, por ter praticamente a mesma base de cálculo e o mesmo fato gerador do IRPJ e por não ter sido instituído por lei complementar, dentre outras questões, deveria ser considerada inconstitucional. Desse modo, Empresas que conseguiram decisões transitadas em julgado favoráveis a essa tese podem ter que recolher o tributo desde 2007, momento da formação de jurisprudência do STF a favor de sua constitucionalidade

Desse modo, diversos contribuintes, muitos deles companhias abertas, que têm suas ações distribuídas ao mercado, já se preocupam com as possíveis cobrança retroativas envolvendo altos valores desses impostos.

No caso das companhias abertas e das empresas auditadas, a recente publicação pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) do Ofício Circular nº 1 foi recebida como uma expressa recomendação de revisão dos prognósticos de perda relativos a contingências eventualmente não registradas na contabilidade das empresas.

Isso pode resultar em prejuízos a terceiros de boa-fé como, por exemplo, investidores e credores. Estes, confiando no estado financeiro da entidade, podem ser surpreendidos com uma deterioração abrupta da situação patrimonial das empresas nas quais investiram ou às quais concederam crédito. Companhias podem, do dia para a noite, apresentar risco de insolvência ou até mesmo desenquadramento regulatório que as impeça de prosseguir com suas atividades (caso das empresas do setor financeiro e de outras atividades reguladas pelo Estado).

É importante entender que essa decisão também pode impactar diretamente os contribuintes que tenham ações transitadas em julgado para outros temas tributários. Como, por exemplo, no caso da incidência do IPI na revenda de produtos importados. Ou para aqueles que ingressaram com ação para a exclusão do ICMS da base do PIS e da COFINS após 15 de março de 2017, por exemplo. Ou seja, o problema pode ser muito maior do que parece.

Por outro lado, poderá haver dificuldade para o Fisco na cobrança retroativa dos créditos tributários tendo em conta questões como a  possibilidade de interposição de recursos como embargos de declaração para esclarecer porque os ministros favoráveis à não modulação ignoraram que o STJ, desde 2011, firmou entendimento de que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade”.

Questões como a prescrição quinquenal, impossibilidade de cobrança de multa sobre crédito tributário formalmente extinto ou com exigibilidade suspensa, entre outros, também podem fazer com que as dúvidas sobre a extensão do problema permaneçam irresolvidas por um bom tempo, aumentando a insegurança jurídica.

O VBSO se coloca à disposição para discussão dos caminhos jurídicos existentes para lidar com essa situação.

Este artigo foi publicado na coluna do Fausto Macedo, no jornal Estadão. Clique aqui para acessar