Cédula de Produto Rural – Exigibilidade de Codevedores

Cédula de Produto Rural – Exigibilidade de Codevedores


Recente decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJ/SP”), nos autos do Agravo de Instrumento n° 2240421-53.2019.8.26.000, julgou improcedente o prosseguimento de uma execução de Cédula de Produto Rural (“CPR”) em face de um grupo de emitentes, codevedoras, não contempladas pelo deferimento da recuperação judicial dos demais emitentes, sob o principal argumento de que as codevedoras, esposas dos demais emitentes em recuperação judicial, não seriam produtoras rurais, conforme arguido pelas codevedoras em primeira instância. Ademais, o juízo recuperacional havia obstado o prosseguimento da execução em face das codevedoras.

É fato que a legitimidade para emitir uma CPR, como dispõe o art. 2° da Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994[1], conforme alterada (“Lei 8.929/94”), exige a qualificação subjetiva de ser produtor rural, suas associações ou cooperativas. A Lei 8.929/94 traça de forma clara os limites a serem observados para a caracterização subjetiva daquele que assume a promessa no título.

No entanto, o caso concreto acima mencionado, apreciado e deliberado pelo TJ/SP, esbarra no princípio da proibição de alegação da própria torpeza em benefício próprio ou, para muitos, “nemo auditur turpitudinem allegans“, ou seja, ninguém pode ser ouvido ao alegar a própria torpeza. Este princípio, embora não sistematizado em nosso ordenamento jurídico, já é amplamente decantado em nossa doutrina e aplicado de forma recorrente em nosso ordenamento como corolário das próprias noções de direito e justiça.

Adicionalmente, nota-se um comportamento contraditório das codevedoras ao se declararem produtoras rurais no momento da emissão da CPR e não produtoras rurais no momento do adimplemento da obrigação representada da cédula. Este comportamento contraditório, repudiado pelo direito, nas palavras do Professor Silvio de Salvo Venosa[2], poderia apresentar no campo jurídico uma conduta ilícita passível mesmo, conforme situação concreta de prejuízo, de indenização por perdas e danos, inclusive de índole moral.

O poder judiciário, por sua vez, já se debruçou sobre este tema em diversas ocasiões, como é o caso abaixo, julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça:

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. OCORRÊNCIA DE TUMULTO PROCESSUAL PROVOCADO PELA AGRAVANTE. ARGUIÇÃO DE NULIDADES. IMPOSSIBILIDADE. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA DOS RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PERDA DO OBJETO DOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. ART. 512 DO CPC. AGRAVO IMPROVIDO. I – A ocorrência de tumulto processual provocado pela parte não é motivo suficiente para provocar a nulidade da publicação da decisão do Superior Tribunal de Justiça que negou seguimento ao recurso extraordinário por ela interposto, visto que não é permitido à parte beneficiar-se de sua própria torpeza. II – O provimento do recurso especial interposto pela União, que restabelece a sentença de primeira instância, prejudica o recurso extraordinário por ela interposto com o mesmo propósito, bem como o apelo extremo interposto pelo agravante. Assim, o acórdão recorrido extraordinariamente foi substituído pelo julgado do Superior Tribunal de Justiça, o que impõe o reconhecimento da prejudicialidade dos recursos extraordinários. III – Agravo regimental improvido.” (grifos nossos)[3]

Senão bastassem os argumentos acima brevemente mencionados, ainda poderíamos discorrer sobre outros princípios legais afetados pelo comportamento das codevedoras no caso narrado, tais como o princípio da boa-fé, da segurança jurídica e da lealdade. Contudo, este exercício não se faz necessário em virtude da evidente inconsistência da decisão prolatada pelo TJ/SP.

O caminho adequado para o caso em referência, em consonância com nosso ordenamento jurídico, seria suspender a execução da CPR em face dos devedores recuperandos e prosseguir o processo executivo em face das codevedoras não contempladas no processo recuperacional.


[1] Art. 2º Têm legitimação para emitir CPR o produtor rural e suas associações, inclusive cooperativas.

[2] Valor Econômico, 23/05/2008, Legislação & Tributos, p. E2.

[3] RE 604466 AgR-segundo, Rio de Janeiro – RJ, Relator Min Ricardo Lewandowski