CONJUR – Multa moratória em caso de modulação de efeitos pelo Supremo Tribunal Federal

CONJUR – Multa moratória em caso de modulação de efeitos pelo Supremo Tribunal Federal

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O STF (Supremo Tribunal Federal) julgou, em março de 2017, o Tema nº 69 (Inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins), e, em abril de 2021, modulou os efeitos dessa decisão. Na decisão de modulação, decidiu-se que apenas poderiam recuperar valores recolhidos antes da data do julgamento — 15.03.2017 — os contribuintes que já haviam ingressado com ação judicial antes dessa data. Com isso, os contribuintes que iniciaram ações judiciais após 15.03.2017 não poderiam recuperar o indébito anterior a esse evento.

O conteúdo da decisão do STF pela modulação nos parece claro. Contudo, não houve deliberação pelo tribunal sobre a situação dos contribuintes que ingressaram com ações judiciais depois de 15.03.2017 e obtiveram trânsito em julgado antes da decisão de modulação.

Nosso objetivo com este artigo não é avaliar a necessidade ou pertinência de ações rescisórias contra as decisões judiciais destes contribuintes. Iremos avaliar uma situação bem específica, relativa à possibilidade de aplicação de multa moratória [1] sobre débitos decorrentes de compensações não homologadas, cujo pedido foi formulado antes da decisão do STF pela modulação de efeitos no Tema nº 69. Ou seja, trataremos do caso dos contribuintes que possuíam decisão judicial transitada em julgado e que, após habilitação do crédito junto à Receita Federal, efetuaram compensações de débitos federais. Caso as compensações não sejam homologadas em razão da decisão do STF em sede de modulação, seria ou não pertinente a aplicação de multa moratória?

A multa moratória representa uma forma de desestimular o pagamento de obrigações tributárias em atraso [2]. No caso em análise, incidiria sobre o valor do débito decorrente da não homologação da compensação efetuada pelo contribuinte. Ao não homologar uma compensação, a Receita indica que o crédito utilizado não preenche a todos os requisitos necessários para que a compensação seja efetivada e, diante disso, notifica o contribuinte para pagamento do débito indevidamente compensado, havendo adição de juros e de multa moratória. A multa é aplicável em razão de o débito ser considerado como declarado, mas não pago dentro do seu vencimento. Não parece haver qualquer irregularidade na exigência desse tipo de penalidade.

Porém, no caso sob análise, trata-se de situação distinta, pois, à época em que efetuada a compensação, o contribuinte possuía crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado. Não teria havido mora, na medida em que a declaração de compensação é instrumento de confissão de dívida e de extinção do crédito tributário, ainda que sujeito a ulterior homologação. O contribuinte, portanto, efetuou a liquidação do débito tributário compensado, sendo que não estaria sob seu controle a possibilidade de aquele crédito, reconhecido judicialmente, habilitado na Receita, perder sua eficácia em decorrência da modulação de efeitos pelo STF no Tema 69.

Se a finalidade da multa moratória é o desestímulo ao pagamento de tributo com atraso, parece-nos que não existe função para o caso em debate. Isso porque não teria havido atraso no pagamento por parte do contribuinte, mas sim a modificação do contexto fático de formação do crédito. Nessa situação, não seria possível ao contribuinte nem ao menos realizar a desistência da compensação apresentada para quitação do débito em espécie, pois, nesse caso, haveria também a incidência de multa moratória, uma vez que a desistência da compensação faz com que o tributo continue pendente e o pagamento a destempo implicaria exigência da multa moratória.

Não há em nosso ordenamento figura semelhante à denúncia espontânea para compensações, isto é, não há a possibilidade de o contribuinte desistir da compensação e quitar em espécie o valor do débito compensado apenas com incidência de juros, justamente porque a compensação representa confissão de dívida na data da transmissão da sua declaração e de extinção do crédito tributário.

Além disso, o julgamento do Tema nº 69 representa um bom exemplo (talvez o melhor) da ausência de segurança jurídica que circunda a questão. Isso porque, apesar de a discussão ter mais de duas décadas, o julgamento pela modulação dos efeitos da decisão ocorreu mais de quatro anos depois da formação do precedente, o que permitiu que um número considerável de processos transitasse em julgado, por força do artigo 1.040, inciso III, do Código de Processo Civil [3], ainda que a propositura tivesse ocorrido após 15.03.2017.

Assim, qual contribuinte que, possuindo decisão judicial transitada em julgado e habilitada na RFB, optaria por não efetuar a compensação apenas com base no receio de uma possível modulação? Parece não ser pertinente considerar essa possibilidade, até porque estaria em curso o prazo prescricional para utilização do crédito reconhecido judicialmente. No mais, o contribuinte teria confiado em princípios basilares do ordenamento, como segurança jurídica, imutabilidade da coisa julgada e proteção da confiança.

Ressalta-se que o princípio da proteção da confiança, como bem definido pelo então ministro do STF Celso de Mello, existe com a finalidade de preservar “situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio Tribunal” [4]. Assim, parece-nos equivocada a aplicação da penalidade moratória, decorrente da qualificação do pagamento como em atraso. Novamente, a extinção do crédito foi promovida pela transmissão da declaração de compensação, sendo o contribuinte vítima de uma mudança da situação fática do crédito que era assegurado por decisão transitada em julgado.

Identificamos que essa questão já foi apresentada por contribuintes em ações rescisórias promovidas pela União no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, mas não foi analisada por questões processuais relacionadas ao procedimento da ação rescisória. Há ressalva, contudo, de que, caso houvesse aplicação da referida multa, caberia ao contribuinte exercer seu direito de defesa, administrativa ou judicialmente. Nesse sentido:

De qualquer forma, eventual cobrança indevida de encargos fiscais e moratórios autorizará ao contribuinte impugnação administrativa e judicial do lançamento (TRF4, ARS 5018064-52.2022.4.04.0000, Primeira Seção, relator Leandro Paulsen, juntado aos autos em 17/08/2022).

No âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, localizamos julgado de relatoria do desembargador federal Marcelo Saraiva, na qual restou registrado que os efeitos da decisão proferida na rescisória não deveriam retroagir “para a contagem de encargos moratórios ou punitivos sobre os créditos tributários eventualmente compensados na vigência da coisa julgada ora parcialmente desconstituída” [5]. Essa determinação foi condicionada à auto regularização do contribuinte dentro do prazo de trinta dias da decisão, em linha com o comando do artigo 63, parágrafo 2º, da Lei nº 9.430/1996, usualmente aplicada para os casos em que ocorre revogação de uma decisão provisória no processo.

Para os demais casos, como a atividade da Receita Federal do Brasil é plenamente vinculada com à lei, é de se esperar a aplicação de multa moratória quando da não homologação de compensações, cabendo aos futuros julgadores, administrativos e judiciais, o dever de verificar sua pertinência. Reiteramos, nesta conclusão, nossas considerações de que não teria havido mora por parte do contribuinte e, sim, uma hipótese excepcional em que o crédito perde sua eficácia em decorrência da modulação dos efeitos e da propositura de ação rescisória, fatos que seriam posteriores ao levantamento e aproveitamento do crédito.

[1] Previsão no artigo 61 e parágrafos da Lei nº: 9430/1196

[2] “A multa moratória visa corrigir os danos decorrentes da impontualidade, e não sancionar o inadimplemento”. [RE 79.625, relator ministro Cordeiro Guerra, P, j. 14-8-1975, DJ de 8-7-1976.]

[3] O artigo 1.040, inciso III, do Código de Processo Civil determina que ao ser publicado o acórdão paradigma, caso não haja determinação de suspensão dos processos, os Tribunais deverão retornar o julgamento dos processos suspensos e deverão aplicar a tese firmada.

[4] MS 26603/DF – Distrito Federal. Julgamento em 04.10.2007. Publicação em 19.12.2008. Tribunal Pleno. Relator: ministro Celso de Mello.

[5] TRF 3ª Região, 2ª Seção, AR – AÇÃO RESCISÓRIA – 5010561-07.2022.4.03.0000, relator desembargador Federal Marcelo Mesquita Saraiva, julgado em 13/06/2023, DJEN DATA: 19/06/2023.