CVM DIVULGA OFÍCIO SOBRE ENQUADRAMENTO DE TOKENS DE RECEBÍVEIS COMO VALORES MOBILIÁRIOS

CVM DIVULGA OFÍCIO SOBRE ENQUADRAMENTO DE TOKENS DE RECEBÍVEIS COMO VALORES MOBILIÁRIOS

Após divulgação no final de 2022 do Parecer de Orientação nº 40/2022 (“Parecer”), por meio do qual consolidou entendimentos relevantes sobre o tema de criptoativos, em 4/04/23 foi divulgado pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) o Ofício-Circular nº 4/2023/CVM/SSE (“Ofício”), que busca orientar os prestadores de serviço envolvidos na atividade de tokenização sobre a caracterização de Tokens de Recebíveis ou Tokens de Renda Fixa (“TR”) como valores mobiliários.

Primeiramente, a CVM reforçou o seu entendimento exposto no Parecer sobre a aplicação da regulação de valores mobiliários a determinados criptoativos, sobre o qual escrevemos aqui.

O Ofício estabelece que “a utilização de DLT (Distributed Ledger Technology), ou qualquer outra tecnologia na emissão, não descaracteriza a natureza do título enquanto valor mobiliário” e não sendo necessária manifestação prévia da autarquia sobre a caracterização de cada ativo como valor mobiliário, cabe aos agentes privados a avaliação sobre a aplicabilidade, ou não, da regulação de mercados de capitais a seus produtos.

Tendo em vista a expansão da utilização de DLT, e o número crescente de ofertas públicas de TR, a CVM entendeu necessário divulgar aos participantes do mercado, principalmente às “exchanges” e “tokenizadoras” e demais agentes envolvidos sobre seu entendimento a respeito do enquadramento desses TR como valores mobiliários, a partir da interpretação de que a oferta dos TR seria equiparável à operação de securitização de que trata a Lei nº 14.430 de 03 de agosto de 2022 (“Lei nº 14.430”) ou oferta de contrato de investimento coletivo (“CIC”) prevista no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385, de 1976.

Como mencionado em nosso boletim supra citado a respeito do Parecer, a CVM também se utilizou do “Howey Test” para embasar o entendimento exarado no Ofício, de que os TR seriam, na maioria das vezes, enquadrados como valores mobiliários.  Tal entendimento partiu na análise das seguintes características dos TR destacadas no Ofício:

(i)        são ofertados publicamente por meio de “exchanges”, “tokenizadoras” ou outros meios;

(ii)       conferem remuneração fixa, variável ou mista ao investidor;

(iii)      podem ser representativos, vinculados ou lastreados em direitos creditórios ou títulos de dívida;

(iv)      os pagamentos de juros e amortização ao investidor decorrem do fluxo de caixa de um ou mais direitos creditórios ou títulos de dívida;

(v)       os direitos creditórios ou títulos de dívida representados pelos TR são cedidos ou emitidos em favor dos investidores finais ou de terceiros que fazem a “custódia” do lastro em nome dos investidores; e

(vi)      a remuneração é definida por terceiro que pode ser o emissor do TR, o cedente, o estruturador ou qualquer agente envolvido na operação.

Dadas tais características, a área técnica concluiu que, quando ofertados publicamente, ou seja, em todas as vezes em que houver esforço de venda, mesmo que realizado exclusivamente a pessoas previamente cadastradas na plataforma eletrônica da exchange ou tokenizadora, a oferta de TR se equipara aos Certificados de Recebíveis, previstos na Lei nº 14.430 (“Certificados de Recebíveis”) ou outro título de securitização, podendo, em determinados casos concretos, ser valores mobiliários em razão de sua caracterização como contrato de investimentos coletivos.

A “equiparação” do TR ao Certificado de Recebível não é isento de críticas. Isso porque, o procedimento de tokenização não caracteriza, em todos os casos, uma operação de securitização, visto que o token pode ser apenas o registro em DLT de operação de cessão do próprio direito creditório.  Ele não configura um “ativo”, muito menos instrumento de dívida cujo pagamento é vinculado ao recebimento de um direito creditório.  Nestes casos, o token é mero registro que legitima seu possuidor com proprietário do próprio direito creditório.

Por sua vez, o “Howey Test” é composto por 6 (seis) requisitos, que elencamos abaixo, juntamente com o entendimento da CVM sobre o caso concreto dos TR, conforme constou do Ofício:

(i) Investimento: aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; a CVM entendeu que este item é aplicável dado que “há aporte de recursos financeiros pelo investidor, seja em dinheiro ou outro ativo com valor econômico, a exemplo de “stablecoins” negociadas ou emitidas pela “exchange””

(ii) Formalização: título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica; a CVM entendeu que este item também é aplicável dado que o resultado da tokenização é a aquisição de um token, pelo investidor, lastreado, representativo ou vinculado ao direito creditório ou título de dívida adquirido com uma taxa de desconto. O conceito da tokenização sugere que a titularidade do token será representada por meio do registro efetivo em rede DLT, ou outra tecnologia, em nome de cada investidor, correspondendo a um título ou contrato”, tendo a tokenização o objetivo de atribuir propriedade ao título eletrônico.

(iii) Caráter coletivo do investimento; a CVM entendeu que este item também é aplicável dado que “os recursos aportados por todos os investidores são direcionados para a aquisição ou para a vinculação conjunta a direitos creditórios, direta ou indiretamente, os quais serão distribuídos em frações representadas por tokens a cada um dos investidores”.

(iv) Expectativa de benefício econômico: seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item (v) a seguir; a CVM entendeu que este item também é aplicável dado que “a oferta dos tokens tem como atrativo a expectativa de benefício econômico por parte dos investidores, via remuneração ofertada”. Sobre esta conclusão, acreditamos ser possível interpretação diversa em determinadas situações, uma vez que nem sem sempre os direitos creditórios adquiridos por meio da tokenização oferecem direito a remuneração e eventual benefício econômico decorre apenas do preço de aquisição do ativo.

(v) Esforço de empreendedor ou de terceiro: o benefício econômico deve resultar da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; neste item, a CVM ressaltou que seria necessária análise casuística, sendo que estaria atendido “se os tokens forem lastreados, vinculados ou representativos de direitos creditórios ou títulos, cujas atividades de seleção, análise de risco, precificação, aquisição, manutenção, custódia ou gestão, seja do(s) direito(s) creditório(s) ou de seu fluxo de caixa, inclusive em atividades de cobrança, sejam desempenhadas, em conjunto ou isoladamente, por terceiros que não o próprio investidor”. Neste caso, a CVM adotou uma interpretação bastante extensiva do conceito de “esforço de terceiros”, abarcando boa parte dos TR, e até mesmo contrariando precedentes da própria autarquia, que já chegou a considerar que esforços prévios à oferta do ativo não estariam aptos a serem considerados para tal fim (por exemplo, a resposta da CVM no âmbito da consulta objeto do Processo CVM nº 19957.004654/2020-93).

(vi) Oferta pública: esforço de captação de recursos junto à poupança popular; a CVM entendeu que este item também é aplicável dado o acima mencionado, a respeito dos esforços de venda.

Do acima exposto, a CVM concluiu pela provável caracterização dos TR que atendam aos requisitos do Howey Test como valores mobiliários, sempre sujeita à análise do caso concreto.

A CVM ainda reforçou que mesmo nos casos em que houver coobrigação do cedente ou de terceiros para adimplemento dos tokens, ainda assim estaria presente o enquadramento enquanto contrato coletivo, e que mesmo a cessão civil de direito creditório não descaracterizaria a oferta pública do TR como valor mobiliário.

Por fim, a CVM concluiu a análise com o entendimento amplo de que, a despeito da formalização, será valor mobiliário todo TR que tiver seu benefício econômico proveniente de terceiros, presentes os demais requisitos do Howey Test, ou sempre que houver equiparação de fato à essência econômica da securitização.

Tendo em vista os entendimentos acima, e que, portanto, as ofertas de TR atualmente realizadas no mercado em sua maioria deveriam se submeter às regras do mercado de capitais, e ao mesmo tempo reconhecendo as limitações atualmente impostas por estas regras para as operações estruturadas em DLT, a CVM sugeriu como alternativa que ofertas de TR possam ser realizadas nas plataformas crowdfunding. Neste caso, os TR seriam emitidos na forma de CR, podendo ser emitidos por companhias securitizadoras de capital fechado, ainda que sem registro na CVM, desde que as ofertas sejam conduzidas por meio de plataformas registradas sob o regime da Resolução CVM nº 88 de 28 de junho de 2022 (“Resolução CVM nº 88”).

Em relação às ofertas submetidas aos procedimentos dispostos na Resolução CVM nº 88, deverão ser observados os requisitos específicos do normativo, em especial o limite de emissão de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais), o máximo de receita bruta anual da emissora, que deverá ser sociedade empresária de pequeno porte e cuja receita bruta anual do exercício social anterior à oferta não supere R$40.000.000,00 (quarenta milhões de reais), sendo certo que este limite será proporcional ao número de meses em que a sociedade houver exercido atividade, caso esta não tenha operado nos 12 (doze) meses anteriores.

Na hipótese da sociedade empresária de pequeno porte emissora ser controlada por outra pessoa jurídica ou fundo de investimento, a receita bruta consolidada anual do conjunto de entidades que estejam sob controle comum não pode exceder R$ 80.000.000,00 (oitenta milhões de reais) no exercício social encerrado no ano anterior à oferta.

Caso haja instituição do regime fiduciário, tal patrimônio separado poderia ser considerado para fins de atingimento do referido limite. Ainda, dado o entendimento da CVM no sentido de equiparar os TR a Certificados de Recebíveis, o instrumento de emissão do token deverá observar os requisitos da Lei nº 14.430, devendo este conteúdo estar registrado no DLT, com identificação de cada token.

As companhias Securitizadoras que emitirem TR deverão ainda contratar serviço de escrituração para as ofertas, tendo em vista que, no entendimento da CVM “os simples registros em rede DLT não equivalem ao controle de titularidade previsto. Ainda, o token não substitui o valor mobiliário em sua representação cartular ou escritural, tampouco atua como certificado do mesmo”. No entanto, em captações de crowdfunding, tal plataforma poderá fazer uso de registros na blockchain, desde que seja possível controlar e comprovar a titularidade e a existência das transações.

No que tange o depósito, a CVM esclareceu que a exceção à necessidade de depósito de valores mobiliários ofertados publicamente aplicável a ofertas realizadas por meio de plataforma de crowdfunding abarca também as ofertas públicas de TR.

Por fim, no mesmo sentido do mencionado no Parecer, a CVM reforçou sua recomendação para que os ofertantes de ativos tokenizados utilizem linguagem acessível ao público quando da divulgação de informações, afim de promover transparência no mercado.

A Equipe de Mercado de Capitais do VBSO está à disposição para esclarecimentos acerca do ofício, tal como seus potenciais impactos em operações realizadas e futuras transações.