CVM consolida entendimentos sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários

CVM consolida entendimentos sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários

No último dia 11 de outubro, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) publicou o Parecer de Orientação n◦ 40 (“Parecer”), que esclarece e consolida entendimentos importantes acerca da emissão, oferta e negociação de ativos digitais – referidos no Parecer como criptoativos – que tenham a natureza de valor mobiliário.  Neste sentido, a CVM esclarece seu posicionamento sobre o enquadramento de ativos digitais como valores mobiliários, as respectivas consequências e suas recomendações a respeito.

As tecnologias de registro distribuído (DLT), como os protocolos de rede blockchain, têm sido cada vez mais utilizadas com o propósito de permitir a criação de ativos de digitais diversos, entre os quais aqueles que servem de instrumento para captação de recursos e investimento.  O uso dessa tecnologia tem grande potencial para democratização do acesso ao mercado de capitais, tanto por parte de tomadores quanto de investidores, por meio da desintermediação, aumento de eficiência, diversificação de produtos e redução de custos, sem necessariamente implicar redução de proteção para investidores.

Contudo, a atual regulação do mercado de capitais – evidentemente concebida em um momento anterior à existência e desenvolvimento dessas tecnologias – com o objetivo de assegurar o adequado funcionamento do mercado e a proteção de investidores, impõe exigências que em parte são incompatíveis ou em alguns casos inacessíveis com o emprego dessas tecnologias, como a necessidade de depósito centralizado ou admissão à negociação em mercados regulamentados.

A despeito das iniciativas do sandbox regulatório, tais restrições inibem o desenvolvimento de casos de uso da tecnologia que poderiam beneficiar a evolução do mercado de capitais e ao mesmo tempo geram insegurança para quem busca desenvolver projetos nesta área.  Muitos buscam não enquadrar os ativos digitais na definição de valor mobiliário para desenvolver seus projetos, mas a falta de clareza sobre a aplicação dos critérios de caracterização de um valor mobiliário inibe a criação de soluções eficientes para o mercado.  Isto porque a oferta pública irregular – aquela sem registro ou autorização da CVM – de um ativo que pode vir a ser considerado a posteriori pelo regulador como valor mobiliário, configura ilícito de natureza administrativa e penal.

Com o Parecer, a CVM dá um passo importante para esclarecer ao mercado seu entendimento sobre o tema e, ao mesmo tempo, se mostra receptiva às nova tecnologias, deixando aberta suas portas para que se viabilize a oferta de ativos digitais que sejam valores mobiliários, mesmo dentro do atual conjunto de regras, sem prejuízo de, no futuro, criar regras específicas para o tema.  Segue abaixo um resumo dos principais entendimentos da autarquia.

Taxonomia de tokens

 Um dos grandes desafios para a adequada regulação de ativos digitais decorre da taxonomia empregada.  Não é incomum o emprego de uma mesma terminologia para designar ativos que possuem naturezas bastantes distintas.  Neste sentido, a CVM, para fins didáticos, segue uma divisão categórica dos ativos digitais: (i) tokens de pagamento, que cumprem a função de moeda ou meio de pagamento; (ii) tokens de utilidade (utility tokens), que conferem acesso a determinados produtos ou serviços; e (iii) tokens referenciados a ativos, que são aqueles que representam um ou mais ativos e dentro dos quais se incluem os security tokens, ou seja, aqueles que possuem a natureza de valor mobiliário e, portanto, estariam sob a alçada de competência da CVM.

Não obstante, a autarquia corretamente esclarece que as categorias não são estanques e a caracterização de um ativo digital como valor mobiliário depende da sua essência econômica e da função que desempenhe dentro de determinado projeto. Ou seja, é fundamental, para tanto, compreender a natureza do token e quais são os direitos e obrigações que ele confere ao seu titular ou terceiros.

Caracterização dos Tokens como Valor Mobiliário

 A CVM, em linha com suas manifestações anteriores, reforça que um token pode ser considerado um valor mobiliário quando: (i) representar digitalmente um valor mobiliário definido em lei (como ações, debêntures, notas comerciais, cotas de fundos de investimento e derivativos); ou (ii) por suas características, se enquadrar no conceito aberto de valor mobiliário previsto no artigo 2º, IX, da Lei n◦ 6.385/76.

Nos termos desse dispositivo, são considerados valores mobiliários, “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”.

Trata-se de uma adaptação brasileira ao “Howey Test” aplicado pela Securities and Exchange Comission (SEC) norte-americana para determinar se um ativo é um security (valor mobiliário).  O texto legal pode ser decomposto em 6 (seis) requisitos, que necessariamente devem estar presentes para caracterização do valor mobiliário:

 

(i)           Investimento: aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica;

(ii)         Formalização: título ou contrato que resulta da relação entre investidor e ofertante, independentemente de sua natureza jurídica ou forma específica;

(iii)        Caráter coletivo do investimento;

(iv)         Expectativa de benefício econômico: seja por direito a alguma forma de participação, parceria ou remuneração, decorrente do sucesso da atividade referida no item (v) a seguir;

(v)          Esforço de empreendedor ou de terceiro: benefício econômico resulta da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; e

(vi)         Oferta pública: esforço de captação de recursos junto à poupança popular.

 

A CVM, neste ponto, não inovou seu entendimento em relação à aplicação do dispositivo, tão menos foi exaustiva no detalhamento da forma de aplicá-lo, sobretudo com relação ao uso de exemplos que são comuns em projetos de tokenização, como tokens de recebíveis.  A autarquia, por exemplo, não esclarece se ativos digitais que representam recebíveis podem ser considerados um empreendimento ou mesmo se o deságio na aquisição do próprio token pode ser interpretado como um direito de remuneração que dependa de esforço de terceiros.

Ainda, ao referir-se à expectativa de benefício econômico, a autarquia amplia demasiadamente o texto da lei (que fala apenas em “direito de participação, de parceria ou de remuneração”).  A aquisição de qualquer bem suscetível de avaliação, em tese, gera expectativa de benefício econômico, sem necessariamente resultar em direito de participação, parceria ou de remuneração.  Isto não apenas alargaria indevidamente o raio de atuação da CVM (e não nos parece ser este o objetivo do próprio regulador), como contraria o princípio de interpretação das regras restritivas de direito (dado que o dispositivo, em última instância, limita o oferecimento de instrumentos de investimento coletivo sem registro na CVM).

Diante disso, nos parece que a aplicação do disposto no artigo 2º, IX, da Lei n◦ 6.385/76 ainda continuará demandando grande esforço interpretativo.

Consequências da Caracterização como Valor Mobiliário

 Uma vez caracterizado um ativo digital como valor mobiliário, a CVM reforça que sua oferta pública sujeita o ativo e o emissor a todas as regras atualmente aplicáveis ao tema, com especial destaque para a Resolução CVM n◦ 80/22 (registro de emissor e seu regime informacional), a Resolução CVM n◦ 160/22 (registro de oferta pública de valor mobiliário), a Resolução CVM n◦ 135/22 (negociação em mercados organizados) e a aplicabilidade das normas relacionadas à: (i) prestação de serviços de depósito centralizado de valores mobiliários; (ii) prestação de serviços de compensação e liquidação de valores mobiliários; e (iii) prestação de serviços de escrituração de valores mobiliários e de emissão de certificados de valores mobiliários.

Na verdade, na visão da CVM, o fato de um serviço ou ativo ser desenvolvido ou ofertado digitalmente, por meio criptográfico ou baseado em tecnologia de registro distribuído, é irrelevante para o enquadramento de um ativo como valor mobiliário ou para a submissão de determinada atividade à regulamentação da CVM.

Porém, sem prejuízo do regime informacional comum aos emissores e ofertas, a CVM apresenta uma lista exemplificativa de recomendações a respeito do regime informacional de oferta de tokens que sejam valores mobiliários, que não substitui a regulação vigente.  Entre elas, incluem-se informações sobre os direitos dos titulares dos tokens, a negociação, infraestrutura e propriedade dos ativos.  São informações específicas sobre os tokens e a tecnologia de forma a assegurar transparência e correta compreensão sobre tais ativos pelos investidores.

Portas abertas

 A despeito do entendimento manifestado de forma totalmente coerente com o atual arcabouço regulatório e que pode aparentar, numa primeira leitura, bastante restritivo para quem pretende desenvolver projetos de uso das novas tecnologias de registro distribuído, a CVM foi muito cuidadosa em não fechar as portas para este uso.

Inclusive, a CVM se posiciona no sentido de que a adoção das recomendações (portanto não vinculantes) do Parecer sobre o regime informacional influenciará “o juízo da CVM sobre os pedidos e poderão nortear a criação de um regime mais flexível no futuro, na certeza de que esta é uma abordagem inicial, sujeita às evoluções e ao desenvolvimento da tecnologia, das características e das funções inerentes aos criptoativos”.

A Autarquia, a nosso ver, deixou as portas abertas para pedidos de dispensa de aplicações de regras atualmente vigentes – o que, na verdade, sempre foi possível. A corroborar este entendimento, dentre suas recomendações sobre a prestação de informações sobre negociação, infraestrutura e propriedade dos tokens, a CVM sugere que o ofertante se manifeste sobre a “aplicabilidade dos serviços de depósito centralizado de valores mobiliários, compensação e liquidação de valores mobiliários, custódia de valores mobiliários, e escrituração de valores mobiliários e de emissão de certificados de valores mobiliários”, bem como “se haverá um prestador de serviços contratado para oferta, a exemplo de intermediário na subscrição de uma oferta, de custodiante ou de depositário”.  Ora, se o ativo digital é um valor mobiliário, como tal, todos estes requisitos seriam, em regra, obrigatórios.  Do mesmo modo, a CVM recomenda que se faça a “indicação das entidades administradora de mercado organizado autorizada pela CVM ou outras plataformas de negociação nas quais o token será ou poderá ser admitido à negociação” (grifo nosso).  Se o token é um valor mobiliário, ele somente poderia, em regra, ser admitido para negociação em mercados regulamentados.

Com isto, a CVM nos parece indicar direções para buscar viabilizar a oferta pública e negociação de tokens que sejam valores mobiliários dentro do conjunto de regras existentes, com a possibilidade de sua flexibilização, desde que, evidentemente, sejam apresentadas salvaguardas que a justifiquem. Isto denota, também, a importância da estruturação adequada e idônea dos projetos de tokenização, para construção de casos de uso que realmente tragam benefícios para o mercado, sem prejuízo do grau de proteção dos investidores.

Por outro lado, a CVM ainda se mostrou atenta ao que chamou de “mercado marginal de criptoativos”, onde são ofertados valores mobiliários sem autorização da CVM, o que pode caracterizar, como dito acima, ilícito de natureza administrativa e penal. Diante das disposições do Parecer, torna-se urgente a necessidade de regularização de tais operações.

Ademais, a CVM esclarece que continuará a se aprofundar no estudo e análise das novas tecnologias e de sua aplicação ao mercado de capitais, podendo, se vier a entender necessário, regular esse novo mercado, no limite de sua competência, inclusive à luz de sua experiência no âmbito do sandbox regulatório.

Intermediários e Fundos de Investimento

 Por fim, o Parecer ainda (i) esclarece, de forma sucinta, o papel dos intermediários nas ofertas de ativos digitais que sejam valor mobiliário ou não, focando no disclosure do seu relacionamento comercial com prestadores de serviços de ativos virtuais e na adoção de medidas de segregação de atividades; e (ii) reitera seus entendimentos anteriores sobre fundos de investimento e criptoativos, frisando a necessidade de estudos aprofundados e interações específicas com o mercado para a adequada evolução do tema pela autarquia.

 

A Equipe de Mercado de Capitais e Direito Digital do VBSO Advogados permanece à disposição para mais esclarecimentos sobre o tema.