Editado o Marco Legal da Securitização

Editado o Marco Legal da Securitização

O mercado brasileiro de securitização de recebíveis ganhou, finalmente, um marco legal unificado e de aplicação geral, independentemente da natureza dos ativos que lastreiam tais operações.

Com a edição da Medida Provisória 1.103, de 16 de março de 2022 (“MP 1.103”), as disposições esparsas que versavam sobre a securitização de créditos imobiliários (Lei nº 9.514/97) e de direitos creditórios do agronegócio (Lei nº 11.076/04) são substituídas por norma de caráter geral, que se fundamenta em conceito preciso de securitização e uniformiza o tratamento destas transações, anteriormente sujeito a regulação setorial e fragmentada.

A nova regra, acertadamente, não restringe as operações de securitização à emissão de Certificados de Recebíveis, conferindo mesmo tratamento às operações em que recebíveis sejam vinculados ao pagamento de outros tipos de valores mobiliários. Neste sentido, deixa claro que operações de securitização correspondem à “emissão e a colocação de valores mobiliários junto a investidores, cujo pagamento é primariamente condicionado ao recebimento de recursos dos direitos creditórios que o lastreiam” (artigo 17, parágrafo único).

De igual modo, a MP 1.103 estende a possibilidade de constituição de regime fiduciário e criação, pelas companhias securitizadoras, de patrimônio separado em benefício dos investidores respectivos, que hoje se aplicam apenas aos Certificados de Recebíveis Imobiliários – CRI e aos Certificados de Recebíveis do Agronegócio – CRA, para emissões envolvendo Certificados de Recebíveis lastreados em quaisquer direitos creditórios e, também, de outros valores mobiliários representativos de operações de securitização (artigo 24).

Tal previsão amplia a possibilidade de utilização de regime fiduciário e trata de modo igualitário todas as possíveis transações de securitização, independentemente da natureza dos recebíveis lastreadores ou dos títulos de securitização emitidos.

Com efeito, o artigo 24 da MP 1.103 estabelece que a companhia securitizadora poderá instituir o regime fiduciário para fins de pagamento “dos Certificados de Recebíveis ou de outros títulos e valores mobiliários representativos de operações de securitização”.  Embora os artigos subsequentes da norma mencionem exclusivamente os Certificados de Recebíveis ao tratar do regime fiduciário, a interpretação destes dispositivos deve ser consentânea com o artigo 24 e, portanto, as menções aos Certificados de Recebíveis devem ser lidas com a extensão dada pelo artigo que abre a seção pertinente ao regime fiduciário.

Esta interpretação é reforçada pelo § 7º do artigo 21 da norma, que estende aos instrumentos de emissão de outros valores mobiliários emitidos no contexto de operações de securitização as regras aplicáveis aos termos de securitização pelos quais são emitidos Certificados de Recebíveis.

Com isso, é eliminada a assimetria regulatória anteriormente existente, que limitava a possibilidade de instituição de regime fiduciário no contexto de emissões de certificados de recebíveis imobiliários – CRI ou do agronegócio – CRA.

Vale dizer, por exemplo, que a partir de agora uma emissão de debêntures lastreada em créditos financeiros, ao amparo da Resolução nº 2.686, do Conselho Monetário Nacional, passa a poder se beneficiar da instituição de regime fiduciário, o que constitui uma relevante proteção para o investidor de tais títulos.

Ainda a respeito do regime fiduciário, a MP 1.103 altera as medidas necessárias para formalização de sua instituição: ao invés de averbação em cartório de registro de imóveis ou registro perante a instituição custodiante de cédulas de crédito imobiliário, como anteriormente previsto na Lei nº 9.514/97, basta que o termo de securitização ou instrumento de emissão do título de securitização seja registrado em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil ou pela CVM a exercer a atividade de registro ou depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários, nos termos do disposto na Lei nº 12.810/13 (artigo 25, §1º).

Esta mesma regra ainda busca robustecer as salvaguardas decorrentes do regime fiduciário, estatuindo que mesmo obrigações de natureza fiscal ou trabalhista não serão aptas a superar a barreira criada entre o patrimônio comum da securitizadora e os patrimônios separados relativos a cada emissão (artigo 26, §4º), superando antiga discussão de mercado sobre a eventual incidência da vetusta Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001.

 

Listamos abaixo outros pontos de destaque da MP 1.103 no tocante à securitização:

 

Criação de uma definição legal de operação de securitização com aplicabilidade ampla. É bem-vinda a criação de uma definição precisa e sucinta de securitização: aquela constante da norma captura de modo adequado a natureza de negócio jurídico coligado e será ferramenta importante para a adequada interpretação, judicial e administrativa, destas transações. Isso vai ao encontro das melhores práticas internacionais na regulação da securitização, de modo compatível e comparável com o Regulamento Europeu de Securitização e a Dodd-Frank Act.

 

Ampliação do espectro de direitos creditórios aptos a lastrearem Certificados de Recebíveis. A nova regra permite que os Certificados de Recebíveis sejam lastreados por direitos creditórios de quaisquer naturezas e originados em quaisquer setores econômicos. Basta que sejam descritos no termo de securitização, e a denominação dos Certificados de Recebíveis deverá especificar a natureza dos direitos creditórios que os lastreiam.  Desse modo, recebíveis mercantis em geral podem lastrear emissões de Certificados de Recebíveis, inclusive com a utilização do regime fiduciário e patrimônio separado.

 

Possibilidade de reabertura de emissão para complementação de lastro. A MP 1.103 estabelece de forma expressa a possibilidade de agregação de novos direitos creditórios como lastro de operações de securitização, na forma que seja prevista no instrumento de emissão (artigos 21, X, e 26, §2º). Esta medida é especialmente no contexto imobiliário, diante da possiblidade de distratos de contratos de compra e venda a prazo de unidades imobiliárias, por exemplo, mas pode ser útil a securitizações que atendam a diversos setores econômicos, mitigando o risco de insuficiência de ativos para fazer frente aos pagamentos esperados pelos investidores.

 

Revolvência. De modo amplo e independentemente da natureza dos recebíveis lastreadores, a nova regra dispõe que o termo de securitização deve dispor sobre a possibilidade de aquisição de novos direitos creditórios com os recursos recebidos pela companhia securitizadora oriundos dos pagamentos dos direitos creditórios originalmente vinculados à operação (artigo 21, XIII).

Com isso, é superado o entendimento anteriormente vigente de que não poderia haver revolvência em securitizações imobiliárias, assim como fica permitido tal expediente em operações de securitização envolvendo recebíveis de qualquer natureza. Esta flexibilidade é importante para permitir que recebíveis de setores econômicos diversos, especialmente aqueles que tenham prazos menores, possam ainda assim ter a securitização como ferramenta acessível de captação derecursos.

 

Ramp up ou aquisição faseada de lastro mediante chamadas de capital. A MP 1.103 permite expressamente que companhias securitizadoras celebrem com investidores compromissos de subscrição de integralização de certificados de recebíveis, permitindo que a securitizadora realize chamadas de capital na medida em que tais recursos sejam necessários para efetiva aquisição dos direitos creditórios (artigo 21, §6º).  Isso flexibiliza a formatação das operações de securitização, aproximando o mercado brasileiro das práticas vistas no exterior e tornando mais racional e eficiente a dinâmica de montagem destas operações.

 

Divisão de atribuições da securitizadora e do agente fiduciário.  A nova regra busca deixar clara a centralidade do papel da securitização na administração do patrimônio separado e na adoção de todas as medidas necessárias para a defesa dos interesses dos investidores beneficiários do regime fiduciário, conferindo a ela poderes-deveres amplos para a consecução deste objetivo (art. 26, §§1º a 6º). Da mesma forma, busca esclarecer o caráter essencialmente fiscalizatório da atividade do agente fiduciário, assim como a subsidiariedade de seu dever de agir na defesa dos interesses dos investidores em substituição à securitizadora que se mostrar inerte (artigo 28).

 

Dação em pagamento de direitos creditórios.  Outra inovação acertada é a possibilidade de dação em pagamento dos direitos creditórios componentes do lastro das operações de securitização aos investidores em casos previstos no termo de securitização e, de forma específica, em caso de liquidação do patrimônio separado em caso de insolvência da securitizadora ou insuficiência de ativos do patrimônio separado sem que os investidores cheguem a uma decisão sobre os mecanismos de administração deste patrimônio ou de sua liquidação.

Com isso se torna possível encerrar emissões que se mostram inviáveis e que, no silêncio das regras existentes até a edição da Medida Provisória, ficavam suspensas em um “limbo” jurídico, sem uma possibilidade clara de solução alternativa.

 

Cláusula de correção por variação cambial.  A previsão de cláusula de correção do valor nominal dos títulos pela variação cambial passa a ser aplicável a qualquer tipo de Certificado de Recebível, ampliando a previsão anteriormente restrita aos CRA.  De início, estes certificados somente poderão ser adquiridos por investidores não residentes, ressalvada a possibilidade de autorização de sua aquisição por investidores residentes mediante norma editada pelo Conselho Monetário Nacional. Vale lembrar que esta autorização já existe especificamente em relação aos CRA.

 

Oferta restrita de Certificados de Recebíveis.  A Instrução CVM nº 476, de 16 de janeiro de 2009, lista apenas os CRI e CRA como Certificados de Recebíveis que podem ser objeto de oferta pública com esforços restritos de distribuição.  Será necessário alterar a regra para que os demais certificados possam ser objeto de oferta restrita.  No entanto, lembramos que a MP 1.103 permite que outros valores mobiliários sejam emitidos no contexto de operação de securitização, de modo que securitizadoras podem se valer de debêntures ou notas comerciais para viabilizar transações neste interim – inclusive fazendo jus à faculdade de instituição de regime fiduciário, como acima discutido.

 

Tratamento fiscal.  Ressaltamos, por fim, que o tratamento fiscal dos CRI e CRA, com isenção do imposto sobre a renda incidente sobre os rendimentos pagos a pessoa física, não se estende aos demais Certificados de Recebíveis, para os quais incidirão as regras gerais de tributação aplicáveis a títulos de renda fixa, variando entre 22,5% a 15% a depender do prazo da aplicação, na forma do artigo 1º da Lei nº 11.033, de 21 de dezembro de 2004.

 

Equipe de Mercado Financeiro e de Capitais – VBSO Advogados